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Mensagens

A mostrar mensagens de 2006

Casa

Tirou a chave do bolso do casaco mas logo se arrependeu e tocou à porta. Abriu-a o filho mais novo, o Gabriel. Disse-lhe, Olá Papá!, como nunca o tinha dito, ou pelo menos, ouviu-o, ele, de uma forma como nunca o tinha ouvido, e a sua garganta fechou. Nunca o menino mostrara tanta alegria em ver o pai. E só tinham passado três dias. Pegou nele ao colo, apertou-o, beijou-o na testa, na face, no pescocito e, recomposto o aparelho vocal, perguntou-lhe se estava tudo bem. A resposta foi já dentro do registo diário: Tá! Depois veio à porta o mais velho, o Abel. Demorou um pouco a aparecer, desconfiado, como um gato que foi expulso da cozinha e agora retorna a medo. Disse, Olá Pai., baixinho, e chegou-se a ele, conduzido pelo braço do pai, que o puxava de encontro ao flanco. Com os filhos assim apertadinhos, sentiu-se confortável e não trocaria esse conforto por nada, a não ser, talvez, o pequeno esforço de se baixar para beijar demoradamente a testa do filho mais velho. Ela assomou à porta,

Artista, eu?

Sempre achei, vou ser benevolente, estranha a conversa de artista; pintor, músico, escultor, actor, escritor. Vejo as interpretações que fazem sobre as suas obras, aquele derramar de frases não encadeadas, a fuga para a incompreensão, a abstracção do inefável, e pergunto o querem estes gajos da vida e quem julgam eles que os outros são? Enfim, achava-os uns cocós, tapando, com a cumplicidade dos críticos, o olho ao Zé, em mais do que um sentido. E faziam-no, observe-se o descaramento, sob uma máscara de enrrabichamento, paneleirismo profissional, quiçá verdadeiro, como que a compor o ramalhete e a tornar mais, alternativo, individual e extraordinário, o que, no fim de contas, não passa de um vulgar mortal. Um pouco como dar relevo a uns pequeníssimos olhos castanhos, tapando-os com uns grandes, caros, escuros e enigmáticos óculos de sol. Mas não é que desde que comecei a escrever, encontrei em mim pontos de contacto com essa corja? Razões se me afiguram que mais ninguém entende, caminh

Paulo

O Paulo era, sabia-mo-lo nós e sabia-o, ou não, ele, homossexual. E sabiam-no, dolorosamente, os pais, mas não o admitiam. A mãe até o empurrava para as meninas do grupo de amigos, e dizia às outras mães que seu o filho, na escola, era um D. Juan e não largava as miúdas. O Paulo não as largava mesmo; fazia parte do grupo delas, como uma delas. Partilhava com elas os segredos da idade e os gostos. Lembro-me de o ver abraçado a esta ou àquela amiga e pensar, como pensa quem tem quinze anos, na sorte que o gajo tinha por as miúdas o deixarem andar assim pendurado nelas. Mal sabia que, para elas, o Paulo Mariana (era esse o nome da sua mãe), não procurava nesses abraços o que procurariam o Pedro da Júlia, o Paulo da Helena ou o Tóni Seixas (Seixas porque da mãe dele, não me lembro do nome). Para o pai era tudo muito mais complicado, mas mais simples de resolver; nunca falava do filho. Os nossos pais, que formavam uma pandilha mais ou menos correspondente à pandilha dos filhos (outras seria

O Rei

Olhou para trás e já não via bem o Castelo. Já só via as colunas retorcidas do fumo das fogueiras das vigias, os seus clarões interrompidos pela passagem da guarda, e os vagos recortes da torre, da muralha e de uma ou outra casa fora de portas. Deu as costas ao lar e olhou para cima. Ainda lá estava. Tinha surgido há pouco mais de quatro luas e pareceu mesmo a cereja em cima do bolo que era a cavernosa melancolia que o tinha tolhido e que trazia a corte apoquentada. – Está triste, caminha só pelas veredas. – Julga de forma branda e desinteressada, nem parece o mesmo; austero, justo e firme. – No templo, chora; parece insatisfeito com os Deuses. – As preocupações eram genuínas. Um sentimento de grande desilusão e revolta o apanhara e perdera todo o interesse pela vida. A esposa, também ela devastada, tentava ainda ser mãe e confortava-o como podia. E ele ia atrás e esforçava-se para, de igual modo, a confortar; vê-los era como ver dois bêbados compensando a falta de equilíbrio de um, co

Crime e Castigo

Albert Speer foi ministro do III Reich. Foi ministro do armamento e munições, cargo que exerceu com a mesma dedicação e competência que colocou nos móveis desenhados para Hitler ou no projecto da megalómana nova Berlin. Recorrendo a inovadoras (à época), técnicas de organização industrial, mas também a muito trabalho escravo, Speer alimentou, enquanto pode ser alimentada, a máquina de guerra alemã. Perto do fim do terror nazi, teve a lucidez de não levar adiante as ordens de Hitler no sentido de destruir o que restava das cidades e das fábricas da Alemanha. Em Nuremberga, mostrou-se arrependido e ficou famoso e conhecido como “O nazi que pediu desculpa”. Contrariamente aos seus pares que nunca mostraram remorso pelas atrocidades por eles perpetradas ou pelas do regime que faziam parte, Speer mostrou-se, em Nuremberga, um homem arrependido por ter sido nazi e de não ter feito mais para o combater. Chegou mesmo a confessar, sabe-se lá com que verdade, que planeou assassinar o seu führer,

Há 39 anos...

Há 39 anos, uma jovem, cansada de chorar e de se contorcer com dores e pavores, dava à luz, soltava para o mundo, o seu primeiro filho. Passada a comoção, descansadas as carnes doridas, olhou o menino e sentiu que era só seu. Ainda hoje diz não conhecer bebé mais bonito que aquele que, tão moça, segurava nos braços. Pena foi que tivesse degenerado, para agora ser o que se não conhece e parecer exactamente o que é. Percorridos 39 anos, com um passado que apenas pode lamentar e um futuro que o tem indiferente, vive o presente para quem, com ele, o presente vive. Nos braços habitam futuros, na cabeça o desespero, no coração o amor universal, com cantinhos para os presentes.

Postal de Natal

Recebi um powerpoint com 20 magníficas fotos da índia, suas gentes e paisagens. Perto do final da apresentação encontrei esta, talvez a melhor das 20 fotos e sem dúvida, para mim, aquela que melhor retrata a índia: um continente onde a beleza arrebatadora trás consigo sofrimento sem igual. Do arrepio que senti com o penetrante olhar das crianças ao postal que têm à frente, foi um instante. Por isso, aproveita: Compra muitas prendas. Deita os plásticos fora. Janta bem. Fica quentinho. Deixa as migalhas na mesa para os anjinhos. Convence-te que o importante é a família.

Grandes zigurates

Recebi a tua mensagem: ‘Grandes zigurates’, dizias. Perdoar-me-ás que te trate por tu, pois aqui só há eu que escrevo e tu, que somos todos, que lemos o que eu, que também podes ser tu, escrevo. Recordo-me que quando era pequeno, uma viagem a qualquer lado, independentemente das estradas más ou dos automóveis manhosos, demorava uma eternidade. Havia tempo para ver casas, curvas, árvores, mais curvas, subidas e descidas; havia tempo para dormir um sono embalado pelo empredrado, deitado no banco de trás e sem cinto de segurança. Como eram seguras essas viagens, o desconhecido era objecto de curiosidade, a distância dava gosto, o tempo que se vencia a 30 à hora sabia a gelado de morango. Ir do Porto à Madalena, Vila Nova de Gaia, era coisa para 50 minutos; passa a ponte, sobe pela rua das caves, segue por lá fora até Coimbrões, mete pela 109 e vira logo para a Madalena. Mas ainda estamos cá em cima, é preciso passar por cima da linha do combóio ( – Acelera, mãe!), continua a descer, passa

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Há uma fúria silenciosa que me quer dominar; Há uma vibrante melancolia que me fascina; Há um desejo permanente de abandonar A linha das convenções. É o abismo da ponte que me chama; É o combóio veloz que me suga a alma; É a recta e é a curva que me desafiam. E se eu saltar; e se eu me atirar; e se eu trambolhar? Que liberdade alcançarei! Que vórtice me encherá! Que estrondo me despertará!

Miguel

O Miguel é um bem disposto. Apesar de ter nascido sem um olho, fez-se um puto forte, seguro de si e resoluto. Rapaz prático, rapidamente tratou de retirar vantagem do infortúnio, camuflado sob uma prótese de cerâmica. Óh Miguel! Tiras o olho e eu dou-te um cigarro. E o Miguel, tirava. Expunha o espaço vazio, dum vermelho vivo e estranho. Assustava as raparigas e chocava professores incapazes de compreender, como ele compreendia, como eu passei a compreender, que ao Miguel não faltava olho nenhum. Nem lhe doía, nem lhe era repugnante; era para ele como ter uma unha preta, e era muito menos marcante que apanhar bexigas e ficar com a tromba cheia de buracos. Um dia, íamos para a escola no trolley de dois andares, cheio, a abarrotar. O Miguel tira o olho e lança-o ao ar pela escada de acesso ao primeiro piso; o olho de vidro sobe e desce, para ficar nas mãos do dono. Repete a façanha umas quantas vezes. Um senhor, todo incomodado com o que via, perguntou-lhe que raio estava ele a fazer, a

O homem da praia (8 e último)

O Adélia Maria esfumou-se e com ele terminou para o homem da praia a faina maior. Até voltava, mas o declínio da indústria, os stocks exauridos, a concorrência de frotas melhor apetrechadas, condenaram a frota portuguesa de bacalhau a um lento mas seguro esquecimento. Ficam as memórias dos que por lá passaram, enquanto por cá andarem e fica o Museu marítimo de Ílhavo. Edifício que pela sua arquitectura apenas merece demorada visita; por ser a memória da faina maior, merece o nosso carinho e apoio. Levemos lá os filhos, os avós, para que se entendam, para que não se quebre a linha do ser português, daquele que, como disse o padre António Vieira, tem um palmo de terra para nascer e o mundo inteiro para morrer. Capitaneava um arrastão ao largo da Mauritânia. A passagem para as águas quentes e para os dias fogosos, trouxe-lhe alívio às penas que começava a sentir, fossem as da idade, fossem as medalhas pelos momentos difíceis por que passou. Superou as muitas diferenças que o tipo pesca ap

Adão

O Adão era um filho da puta, ou pelo menos foi nisso que o tornaram. Mas quando tinha 12 anos e eu sete, o Adão era o maior. Quando, com cinco anos cheguei à escola, ele já lá estava, e fizemos juntos juntos toda a primária. No dia do exame de quarta classe, ficou a meu lado, com o beneplácito do professor Nelson, para digamos, assegurar, aos 14 anos, a passagem no exame. Sem saber bem porquê comecei a pedir à minha mãe lanche para dois. Acho que ele nunca me pediu nada, nem eu a ele, mas a dada altura éramos uma espécie de mestre e discípulo, partilhando o que tínhamos para dar; eu comida, ele ratice. É claro que fiquei sempre a ganhar. Pães, leite, maças e bananas foram trocados por saltar lanços inteiros de escadas, fugir à camioneta da natação e regressar à escola a pé pelo monte Aventino, descer como um bombeiro por um pilar de ferro fundido com mais de oito metros de altura (numa escola que era uma verdadeira aberração arquitectónica), e muitas outras façanhas que deixavam o prof

O homem da praia (7)

Corriam as campanhas e o homem sempre regressava para contar as suas histórias, ou talvez fosse melhor dizer, regressava para contar as histórias do atlântico norte. Porque eram dele as histórias. Eram frias, distantes daquela praia amena e daquele mar temperado que a banhava. Os pescadores que as ouviam, perdiam-se na imensidão, atemorizavam-se com o gelo, congratulavam-se com a camaradagem dos que viviam a bordo e protestavam contra a disciplina militar vivida; detestada mas necessária pois, há falta de quem lhes aliviasse o ‘gonadal’ stress, não fosse pela dura disciplina, e em pouco tempo nem o bacalhau escapava. Ainda assim, perante tantas diferenças, cenário, dimensão, risco ou prémio, reconheciam a faina, os gestos, as técnicas, as manhas dos bichos e os caprichos de Éolos. Um dia, uma terrível notícia chegou pelo telefone do tasco. O Adélia Maria naufragou ao largo da Terra Nova após um incêndio abordo. E ele?... Não, não morreu. Morreram homens? Poucos. Poucos, mas morreram. H

O homem da praia (6)

Quem, como eu, tem da pesca, um conceito puramente desportivo ou mesmo fabulado, estranha como pode alguém deixar-se baixar de um lugre de quatro mastros, tendo como único escudo contra o mais despótico dos mares, pouco mais que uma dúzia de tábuas. E ainda por cima, ter de as carregar com quanto bacalhau as linhas trouxerem, fazendo a casquinha afundar no mar e baloiçar perigosamente. Eram aqueles tempos de grande fartura, sem preocupações ambientais de reposição de stocks mas também, sem excessos de sobre-pesca. Os bacalhaus eram monstros e deixavam claro que não queriam ser pescados, sendo necessário por vazes, amacia-los com uma porretada na tola. Só a imponência do peixe meteria medo ao menos experiente. Lembro-me, pequeno, quase sem irmãos, das encomendas em papel de embrulho amarelo, atadas com corda de sisal que o meu pai trazia para casa pela altura do natal. O embrulho, por si só merecia um livro, com a sua peguinha e nós aparados, mas fica para outra altura. De cura amarela

Ponto de vista / Point of view

Este é um rascunho, terá erros. Façam-mos notar, por favor. p az Mal abrigada debaixo de uma sacada, uma mulher molhada, vê parar à sua frente, uma carrinha de caixa aberta. Chovia copiosamente, e ela, desprevenida, a meio do caminho entre qualquer sítio e algum lugar, aguardava, talvez já tarde, que espraiasse. Reparou que na carrinha seguia um homem de bigode, camisa aberta e volta de ouro com a face de Cristo coroado de espinhos pendendo, galhardete do SLB pendurado no retrovisor, ouvindo o CD do Zé Cabra. Atrás, na caixa de carga aberta, encolhia-se num dos cantos, uma mulher de aspecto miserável. Não que fosse miserável; era jovem e bonita. Mas tinha a roupa ensopada, o cabelo ensarilhado e escorrido e estava toda encolhida a um canto, quase amarrotada. Quer por demorar o semáforo a virar, ou simplesmente, por chover e o tempo passar mais devagar, a carrinha demorou a arrancar, permitindo uma troca cúmplice de olhar entre duas compagnon de route, íntimas confidencias silenciosas e

O homem da praia (5)

Há quem diga que o difícil são os dias iguais, os tempos monótonos; que para os grandes momentos há sempre forças que se arrancam do mais fundo e mais escondido do ser, transformando a comum contabilista ou o vulgar motorista, numa Joana ou num Ulisses. Padecia o homem da praia, incapaz de ombrear com a monotonia. Duplamente precavido, depois do naufrágio, evitava as borrascas, passando a cheira-las muito antes de se anunciarem; barco novo e aparelhos do melhor que há, deixavam pouco ao sonho e ao amor pelo mar. Tinha a vida em cruzeiro; casado, filhos a caminho? Quando um dia, no tasco, lhe disseram que já tinha contado aquela história que levava já a meio, retesou cabos, enfunou e traçou novo rumo. Cruzava o imenso atlântico norte em direcção ao Lavrador, seguindo, mais cá, mais lá, o trajecto que Eric - o Vermelho tinha feito 1000 anos antes. Vencido pelo que para outros é conquista, a estabilidade e a certeza no amanhã, tomava de frente o frio, o sol e sentia o tamanho do navio deb

Uma sande frustrada...

Afonso: - Vou mas é comer este pão congelado. Leonor: - Mano! Também quero. Afonso: (Corta, a custo, uma fatia e dá-lhe uns segundos de agitação molecular) - Toma Leonor. Leonor: (A chorar) - Este pão não tem gelado!!!

Burros.

Apercebi-me que, por verdadeiros que continuem, certos ditados poderão estar desajustados da realidade que pretendem reflectir. "Um burro carregado de livros, é um doutor", pode muito bem ser um deles. Pensei então que melhor seria trazer essa verdade universal para os dias de hoje da seguinte forma: "Um burro carregado de computador portátil é um engenheiro informático; se carregar um macintosh, é um designer".

O homem da praia (4)

Mares diferentes ensinam coisas diferentes a homens diferentes. Ao da Murtosa, que o silêncio das imensidões árcticas é falsa calma; ao das Fidji, que o arpão não basta para o afastar o tigre; ao Nórdico, que há uma cilada atrás de cada onda; ao Caribenho, que a fartura dum mar de cristal é ilusória; ao japonês, que toda a tecnologia é pouca quando os Kami sopram da China. Mas há uma coisa que todos os pescadores aprenderam, seja qual for o professor, que o mar vence sempre, não adianta combatê-lo. O homem tinha aí uns dez anos de mar a sério. Saíram cedo, muito cedo, como de costume. Mar chão, firmamento tão limpo que mesmo sem lua se via quem à duna assomava; homem e irmãos preparados para uma madrugada pacata, quase de descanso, a pescar fanecas de quilo. Não era sempre, mas quando lhe batia e sem saber bem porquê, rumava a um pego e à linha, que outra maneira não aceitava, arrancava às funduras, gordas fanecas; Trisopterus Luscus que, por via da súbita quebra de pressão, visto hab

O homem da praia (3)

O tempo, a experiência e a destreza fizeram do homem um pescador exímio. Após a reforma do pai, passou a comandar a companha de irmãos. Todos encararam esta usurpação como algo natural, dado que, andava ainda o pai no barco, e já era ele quem escolhia pesqueiros, avaliava marés, antecipava borrascas; igualmente o que negociava preços de iscas e cabazes, aparelhos e combustíveis. Depois da tragédia com o barco do Zé Russo, de que só um caixote foi encontrado, obrigou os irmãos, e ele, a vestirem coletes salva vidas e a, no sossego de uma enseada, deitarem-se ao mar, barco virado e tudo, como treino para horas mais difíceis. A sua companha era a mais bem sucedida. Peixe, muito peixe, graúdo e variado, levantaram, àquela família, o jugo pesado do armador. Compraram barco e aparelhos; eram livres. À tarde, enquanto se remendavam as redes, calafetavam os barcos ou simplesmente se bebia vinho por entre batidas de sueca, o homem contava histórias. Todos os dias contava uma diferente. Todas so

O homem da praia (2)

Há anos, sei lá quantos, quando o homem não ainda era um homem senão na sua potência, quando era um ainda menino, brincava na mesma praia, empoleirava-se na mesma pedra e fitava o mar com os mesmos olhos. Como todos os miúdos, corria na areia molhada, jogava ao carolo, aprendia brincando a arte da pesca à linha. Sonhava em ser pescador, partir para a faina, como o seu pai e irmãos mais velhos faziam. Estava sempre presente na chegada dos barcos. Saltava de excitação só de ver os bois em manobras para trazerem a rede para o areal; uma junta nesta ponta, a outra lá mais ao longe. Lentamente, ao longo da linha da maré, convergiam para depois começarem a subir na direcção da duna. Quando via o mar a ferver pelo movimento desesperado dos peixinhos, que estavam ali estavam no prato, já não se continha. Salivava, limpava a boca com o antebraço e gritava; é peixe! é peixe! Todos riam do rapazito e diziam à mãe, peixeira filha de peixeira, que aquele daria pescador de bacalhau na Terra Nova ou

Da felicidade de ser

Se algum dia fosse obrigado a manter um único pensamento, se, fosse a minha mente restrita, à força de lei, a um só pensamento, impedida, sob pena de cessação de função cerebral superior, de se espraiar pelo Universo que somos e em que nos encontramos, ficaria, de bom grado, pela consciência, ou falta dela, dos actos e das omissões. Imagino-me, para o resto da vida pensante, que pode ou não coincidir com a biológica, para mais ou para menos, absorto nesta linha de pensamento; averiguando a extensão imediata da meditação, procedendo a definições e parametrizações, estipulando regras e metodologias de investigação e análise, lançando teorias, delineando experimentos, avaliando resultados. Numa fase mais adiantada do exercício, anteciparia o intangível, o inesperado desta ou daquela conclusão, regozijaria perante a copa de ramificações do que era primeiramente um tronco e que agora aparece como árvore, frondosa, intrincada, inexpugnável. Torço-me perante os ramais truncados, os ramos inco

O zigurate

Pedi-te que me mostrasses o teu zigurate. Correspondeste, e com um "Estou ansiosa", chutaste a bola para o jardim. Do lado de cá, ainda tentei usar o mês de Agosto como desculpa para não o fazer. No entanto crescia a necessidade de escrever, o tempo é pouco, eu sei, mas isso não pode ser razão para deixar de escrever. Apercebi-me que o blog tem mais de dois anos, que começou pequeno, com uma ou duas linhas, a espaços. Foi crescendo e continua pequeno, visitam-no poucos, lêem-no ainda menos. Nem tudo é mau, os anúncios google já renderam USD 4,42, e apenas em quatro meses; não trabalhes, não. Tem mais de dois anos e desde o primeiro post que me perguntam o que é o zigurate, o meu, porque o do Iraque já conhecem. O zigurate é um edifício mental, construído para reforçar a confusão e manter viva a chama. Vês? já está. Sempre lá esteve, era só ler; posso dar esta explicação como terminada e ir para a cama, que me espera uma semana demoníaca; pouco mais terei a acrescentar ao meu

O homem da praia (1)

Há uma praia que visito sempre que posso. É uma praia sempre deserta, com um areal limpo e alisado pela cheia da maré. O ar está sempre fresco, a maresia aviva o espírito e faz o corpo corresponder com saltos pelas pedras que a baixa-mar expõe. Procuro caranguejos por debaixo das pedras, busco camarões, peixes e estrelas-do-mar nas poças límpidas e quietas. Tenho outra vez dez, doze anos, não mais. Tudo é novo e divertido; simples e catastrófico; fascinante e aventuroso. Na falta da trupe, invento tramas diabólicas de aventuras marinhas sem par. Investem devastadoras ondas monumentais, correm torrentes de cheia capazes de aniquilar a civilização tal qual a conhecemos; salvo populações inteiras dum destino atroz. No fim, partem os larotes e os caranguejos sem sequer agradecerem. Ingratos, amanhã brinco aos pescadores de arrasto. Nessa praia só o mar fala. A sua voz ressoa, troa aos ouvidos dos inoportunos que ousam tentar sobrepor a sua voz à da dele. A princípio pode parecer excessiva,

O Patinho que grunhia (toda a história)

Como a história não estava a ter boa aceitação por parte da sua única cliente, optei por uma reformulação de registo. Cá vai, O Patinho que grunhia em versão expresso: A mamã pata pôs três ovinhos. Deles saltam três patinhos; o mano pato, a mana pata e o patinho. A mamã ficou feliz e pediu-lhes que falassem. O mano pato fez – Quá! Quá! – A mana pata fez: – Quá! Quá! – O patinho abriu o bico e fez: – Óinc! – Aí Jesus! – Disse a mãe pata. – Não pode ser patinho. Tens que falar como os teus manos. Passaram dias e chegou a altura de os patinhos irem para a escola dos patos. Lá, o professor pato perguntava e os patinhos respondiam. O mano pato respondeu – Quá! Quá! – A mana pata respondeu: – Quá! Quá! – O patinho respondeu: – Óinc! – Aí Jesus! – Disse o professor pato. – Vai-te embora. Vai-te embora. Tens de falar como os patos. A situação era difícil para o patinho. Quando começou a escola de música, o patinho achou que ia ser aí que iriam gostar dele. A professora pata, grande grasnadora,

Hoje apeteceu-me

Hoje apeteceu-me colar-me à cadeira Auto-estrada, 60 70, terceira Passa um, 90 100, quarta Passa-os a todos, 120 130, quinta Acelerar, tirar o cinto e Ligar o cruzeiro Abrir os braços e do carro, voar para fora Descolar suavemente como um veleiro Ver a estrada toda e ir-me embora Aumentar, crescer Ver a cidade, passar os dedos pelas ruas Mergulhar no mar de espuma a ferver Olhar a um lance paisagens que são tuas Aumentar, expandir Segurar o planeta na mão conhecer as plantas, os bichos, o porvir Abraçar o sol no braço da constelação Aumentar, consentir Percorrer galáxias num segundo Trespassar conglomerados, ver o Mundo Olhar nos olhos de Deus e com ele me fundir Ainda bem que não conduzi hoje Ninguém gostaria disso, pois não?

Centro de Interpretação Geológica de Canelas

Num Sábado de sol, o Zé, o Pedro e o Afonso trocaram o que seria uma manhã a dormir ou a ver televisão por uma viagem no tempo a quase 500 milhões de anos atrás. A meio caminho entre Arouca e Alvarenga, fica o Centro de Interpretação Geológica de Canelas. Um micro museu com um espólio monumental. Numa centenária pedreira de ardósias, são postos a descoberto fósseis únicos no mundo. Há mais de 450 milhões de anos, o leito de mar pouco profundo na orla do super continente Pangeia, lá para o que é agora o poló sul, viria a formar as ardósias de Canelas. Nesse mar viviam trilobites, as formas de vida dominantes de um ecossistema quase inimaginável, no período Ordovícico Médio, altura em que a vida não havia ainda conquistado a terra. Segundo Artur Abreu Sá, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e responsável pela equipa científica da nova estrutura museológica: "É um capítulo da História da vida na Terra que aqui se conta". Segundo o responsável da pedreira don

Exageros

Certo dia, viajava de combóio entre Aveiro e o Porto, quando um bacano, que estava sentado no banco oposto ao meu, saltou do que seria um sono descontraído até Gaia, para um tremendo sobressalto. – O cigarro! Você viu o cigarro que me caiu da mão? – Perguntava sem olhar para mim ou para o outro passageiro que comigo preenchia a dupla de bancos e a palermice duma viagem pára–em–todas. Estava agachado, a espreitar para debaixo do banco donde se havia catapultado, com uma mão no dito banco e a outra no meu joelho. – Ó patrão! Você estava a dormir. Não há cigarro nenhum. – Mas eu tinha-o na mão. Tem a certeza que não o viu cair? – Ouça. Está num combóio; acha que o deixavam fumar cá dentro? – O homem sabia já que não tinha tido cigarro nenhum na mão, mas ainda olhava para debaixo dos bancos. Sentou-se e não dormiu até ao fim da viagem. Fiquei intrigadíssimo com o sucedido. Assim que tive oportunidade contei a história a uma psicóloga e perguntei-lhe se aquilo de trazer os sonhos para o lad

Vila Nova de Milfontes

Num dia bom. por hoje é tudo.

Sobre sexo… dos anjos

Há meses, talvez anos, que não passava pela Capela das Almas, na rua de S.ta Catarina, e olhava. Há dias passei, e olhei os belíssimos azulejos que só em 1929 foram adicionados à Capela cuja construção data de princípios do Séc. XVIII. Representam a vida e padecimento dos dois Santos lá adorados; S. Francisco de Assis e, claro, S.ta Catarina. Desconheço se S.ta Catarina de Alexandria, mandada decapitar pelo imperador romano Maximus e cujo corpo desapareceu misteriosamente do seu túmulo, para aparecer a milhares de kms de distância, no Monte Sinai, ou S.ta Catarina de Siena, talvez a primeira anoréctica que se conhece, que viveu uma vida de caridade para com os pestilentos e, diz-se, convenceu Gregório XI a deixar Avinhão e regressar o papado a Roma. De S. Francisco de Assis, nada há a dizer, senão talvez, tudo a aprender. Dizia que passei pela Capela e olhei. Olhei e fiquei inquieto com a revelação que me faziam os azulejos; os anjos têm umbigo. Não sei se todos o têm, mas aqueles têm-

Deuses das coisas pequenas

Na ânsia de compreender e sossegar, criamos deuses como resposta às grandes dúvidas, aos grandes tormentos, à enorme pena que é a existência. Tão bem os criamos para tão grandes tarefas e tão bem os aceitamos que somos agora sua grande criação, complacentes perante o seu juízo e critério, justificados na sua existência. Os deuses fizeram o mundo todo e fizeram-nos a todos no mundo de modo a não termos dúvidas de como aqui chegamos, o que fazer enquanto por cá andarmos e depois de morrer, para onde vamos. De todas essas grandes coisas os deuses se ocuparam, e se ocupam, uns mais sectoriais, outros mais abrangentes. E das coisas pequenas? Haverá deuses do pequenino? O deus que é só carinho e que puxa suavemente os cantos à boca dos bebés que dormem; A deusa que é só sopro e que enfuna as folhas caídas num trilho de floresta fazendo-as rodopiar; A deusa que é só água e que faz com que o fresco da manhã pareça um gelado ou um batido de canela; O deus pequenino que cavalga o gatinho que bri

Das coisas inúteis...

... que dão imenso prazer. Há dias, perguntou-me o meu filho que nome se dava ao ponto da órbita da Lua em que esta está mais próxima da Terra. Cheguei a três nomes: Perigeu, Apogeu e Hipogeu. Perigeu , do grego perígion (perto da terra), designa o ponto em que a órbita de um astro mais se aproxima da Terra. Daí que o ponto da órbita da Lua mais próximo da Terra, se designe por perigeu lunar. Imagina-se facilmente como se formou esta palavra se nos lembrar-mos das palavras: perímetro e geografia. Apogeu é o ponto da órbita de um astro mais longínquo da Terra; sendo o apogeu lunar o ponto da órbita da Lua mais distante da sua âncora astral. Quando um inglês procura desculpar-se (afastar-se) da responsabilidade, diz: “Please accept my apologies.” Hipogeu é um túmulo subterrâneo. Extensivamente, pode designar adega, celeiro, cave ou túnel. Para além da botânica, onde também tem significado próprio, hipogeu era o nome dado pelos romanos aos dois pisos subterrâneos do Coliseu, de onde er

O Patinho que grunhia (2)

Estremunhado, o patinho bicou, bicou, bicou e furou a casca com tamanha força que saltou para fora dela, dando duas cambalhotas na palha fofa do ninho, aterrando de bico. O ganso o apreçou-se a examinar o bichinho de alto a baixo, não tivesse ele partido uma asita ou torcido o fino pescoço. Está tudo bem, disse e entregou o patinho à mãe que segurava já os três irmãos. Os patinhos olhavam a mãe e a mãe olhava os patinhos; tão fixamente se olhavam que mais parecia serem os únicos na imensa capoeira. Os cientistas que estudam o comportamento animal chamam a este processo fixação, que faz com que, seja pato, seja crocodilo, os animaizinhos sigam a mãe para todo o lado, e a mãe, herbívora ou predadora, se sente obrigada a protege-los, por maior que seja o perigo. Seja qual for o nome, mãe e filhos sabem que é amor de que se trata. Vendo os bebés cansados por tanta agitação, pai pato mandou todos de volta aos seus afazeres; a camareira voltou às lides da capoeira, o mordomo foi para o lago

O Patinho que grunhia (1)

Era uma vez uma mãe pata e um pai pato. Juntos fizeram um ninho onde a mãe pata colocou quatro ovos. Estes patos não eram uns patos quaisquer, não senhor, eram patos reais, senhoriais e territoriais. Tinham uma capoeira só para si no meio de um grande cercado e acesso exclusivo ao lago. Por cima do portão da entrada, o pai pato mandou gravar uma lápide com a sua real origem: Reino: Animalia;?Filo: Chordata;?Classe: Aves;?Ordem: Anseriformes;?Família: Anatidae.?Era primo afastado do Tio Patinhas e a mãe pata filha de um mandarim chinês muito famoso. Reais que eram os pais, também os ovos o eram, e todos os cuidados eram poucos para que os patinhos e patinhas dentro deles se desenvolvessem nas melhores condições. O ganso mudo, bicho de poucas falas, inspeccionava os ovos diariamente. Médico licenciado pela universidade dos bichos, escutava ovo a ovo com um estetoscópio de ovos e colocava-os contra o sol para, aproveitando a translucidez natural das cascas finas, confirmar o vigor dos pat

Saber

Ouço todos os professores, de todos os graus de ensino, dizerem que os seus alunos nada sabem, que se não lhes pode alongar o discurso sem que se percam ou aprofundar as matérias sem que se confundam. Queixam-se ainda que vêm mal preparados, que não dominam os conhecimentos base, obrigatoriamente adquiridos em etapas anteriores e que não têm nem hábitos, nem métodos de estudo. Será fácil a qualquer um apontar um caso, ou dois, deste ou daquele licenciado, nesta ou naquela ciência, que é, como alguém já disse, um analfabeto especializado; poderá mesmo haver alguém que tome este ou aquele caso e o generalize ao todo da população licenciada; poderá ou não ter razão, dependendo de quem lha dá. Se apontarmos o olhar para os que não concluíram a escolaridade obrigatória, os exemplos serão porventura mais abundantes e mais marcantes, logo mais simples de apontar, referir e generalizar. Que a educação vai mal; que o facilitismo impera; que as políticas postas em prática são sempre as erradas

Saudade

Se há palavras portuguesas, saudade é seguramente uma delas. Para A Enciclopédia, edição do Público, obra planeada e realizada pelos Serviços do Departamento de Enciclopédias e Dicionários da Editorial Verbo, Saudade é nf Lembrança, suave e triste ao mesmo tempo, de um bem do qual se está privado; pesar, mágoa que nos causa a ausência de pessoa querida; nostalgia; pl (fam.) cumprimentos, lembranças afectuosas a pessoas ausentes. O dicionário da Porto Editora, na sua 7ª Edição de 1994, define Saudade como s. f. melancolia causada por um bem de que se está privado; mágoa que se sente por ausência ou desaparecimento de pessoas, coisas, estados ou acções; pesar; nostalgia; pl. cumprimentos a uma pessoa ausente; lembranças. O dicionário Universal da Língua Portuguesa On-line da Texto Editores, define Saudade (do ant. soedade, soidade, suidade do Lat. solitate, com influência de saudar) como s. f. lembrança triste e suave de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de a