Há anos, sei lá quantos, quando o homem não ainda era um homem senão na sua potência, quando era um ainda menino, brincava na mesma praia, empoleirava-se na mesma pedra e fitava o mar com os mesmos olhos. Como todos os miúdos, corria na areia molhada, jogava ao carolo, aprendia brincando a arte da pesca à linha. Sonhava em ser pescador, partir para a faina, como o seu pai e irmãos mais velhos faziam. Estava sempre presente na chegada dos barcos. Saltava de excitação só de ver os bois em manobras para trazerem a rede para o areal; uma junta nesta ponta, a outra lá mais ao longe. Lentamente, ao longo da linha da maré, convergiam para depois começarem a subir na direcção da duna. Quando via o mar a ferver pelo movimento desesperado dos peixinhos, que estavam ali estavam no prato, já não se continha. Salivava, limpava a boca com o antebraço e gritava; é peixe! é peixe! Todos riam do rapazito e diziam à mãe, peixeira filha de peixeira, que aquele daria pescador de bacalhau na Terra Nova ou de atum rabilho nas águas quentes da Madeira e que ia tirar a família toda da miséria com o que em trinta anos de trabalho, tivesse ele essa sorte. Puxava ele mesmo o que faltava para completar o tormento da captura e parecia que puxava mais do que os bois. Já sabia quase tudo, as espécies, os aparelhos, as técnicas. Se achava que ainda não sabia isto, ou dominava mal aquilo, infernizava com perguntas as folgas dos homens, zoando pelo tasco, interrompendo a sueca, a lerpa ou o dominó. Por mais de uma vez foi corrido à chapada ou ao pontapé no rabo por um pescador, cujo álcool ou azar às cartas, encurtara o rastilho da pachorra. Sabia gingar como poucos, largava no bote manhã cedo, ainda o frio do ar e da água lhe mirrava mais o que, fruto da idade, ainda era mirradito. Munido de linhas, aparelhos, anzóis e isco, pescava a manhã toda, ora ao fundo, ora à bóia. Danava quanta variedade de peixe cruzava aquelas águas. Aproveitava a maré para deixar o seu ambiente natural e regressar à praia e à mãe que o aguardava. Meia ralada pela ousadia do catraio, que passava horas a fio dentro do bote, meia satisfeita pela sua vocação, que cobria o fundo do barquinho, aguardava-o com o pregão apostos para caçar o veraneante interessado nas coisas típicas da terra.
Chegou depressa o dia de embarcar a sério com o pai e os irmãos. Naquela praia era, e se calhar ainda é, difícil haver meninos e quase nunca há rapazes, aqueles seres que são homens por fora mas meninos por dentro. Saltou para o barco mal iluminado pelo petromax e ocupou, sem que lho indicassem, o seu lugar; eram quatro da manhã. Quando pelas onze saltou para a praia e passou os cabos para serem amarrados à junta, ninguém, nem mesmo a mãe, o reconhecia. O sol matutino lavrou-lhe rugas na testa e nos cantos da boca, o vento alisou-lhe o cabelo, o mar aprofundou-lhe o olhar, e as estrelas deixaram-lho a faiscar. A voz, talvez pela humidade do mar, talvez pela aguardente que foi bebericando para combater o frio, ganhou corpo e serenou. Logo nesse dia, com o que ganhou, entrou no tasco e pediu uma taça, só uma, porque ganhou pouco, era novato e isso de beber sem conta era para quem se tinha perdido ou então não gostou do que encontrou. Começou, sem que ninguém lhe pedisse o que fosse, a contar como tinha corrido a faina. Era uma história que todos conheciam, um relato banal de mais uma pescaria. estivesse-mos no interior e seria como o Zé da Petiz narrar a saga do cebolinho. Mas algo na forma apaixonada como a saída tinha corrido e estava a ser contada, as correntes que os conduziram, os pesqueiros que soube escolher como se lá estivesse estado, o lançar das redes, das bóias, os nós e os sinais, prendeu aqueles homens. Quando terminou, todos os pescadores, os lobos do mar, os outros menos batidos, um ou dois neófitos como ele, permaneceram em silêncio até que um lhe pediu que continuasse, que contasse outra história. Amanhã há mais, disse, sem soar triunfante ou paternal. E saiu.
Chegou depressa o dia de embarcar a sério com o pai e os irmãos. Naquela praia era, e se calhar ainda é, difícil haver meninos e quase nunca há rapazes, aqueles seres que são homens por fora mas meninos por dentro. Saltou para o barco mal iluminado pelo petromax e ocupou, sem que lho indicassem, o seu lugar; eram quatro da manhã. Quando pelas onze saltou para a praia e passou os cabos para serem amarrados à junta, ninguém, nem mesmo a mãe, o reconhecia. O sol matutino lavrou-lhe rugas na testa e nos cantos da boca, o vento alisou-lhe o cabelo, o mar aprofundou-lhe o olhar, e as estrelas deixaram-lho a faiscar. A voz, talvez pela humidade do mar, talvez pela aguardente que foi bebericando para combater o frio, ganhou corpo e serenou. Logo nesse dia, com o que ganhou, entrou no tasco e pediu uma taça, só uma, porque ganhou pouco, era novato e isso de beber sem conta era para quem se tinha perdido ou então não gostou do que encontrou. Começou, sem que ninguém lhe pedisse o que fosse, a contar como tinha corrido a faina. Era uma história que todos conheciam, um relato banal de mais uma pescaria. estivesse-mos no interior e seria como o Zé da Petiz narrar a saga do cebolinho. Mas algo na forma apaixonada como a saída tinha corrido e estava a ser contada, as correntes que os conduziram, os pesqueiros que soube escolher como se lá estivesse estado, o lançar das redes, das bóias, os nós e os sinais, prendeu aqueles homens. Quando terminou, todos os pescadores, os lobos do mar, os outros menos batidos, um ou dois neófitos como ele, permaneceram em silêncio até que um lhe pediu que continuasse, que contasse outra história. Amanhã há mais, disse, sem soar triunfante ou paternal. E saiu.
Comentários
De muito longe mando vibrações positivas. Paz á todos nós