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O homem da praia (5)

Há quem diga que o difícil são os dias iguais, os tempos monótonos; que para os grandes momentos há sempre forças que se arrancam do mais fundo e mais escondido do ser, transformando a comum contabilista ou o vulgar motorista, numa Joana ou num Ulisses. Padecia o homem da praia, incapaz de ombrear com a monotonia. Duplamente precavido, depois do naufrágio, evitava as borrascas, passando a cheira-las muito antes de se anunciarem; barco novo e aparelhos do melhor que há, deixavam pouco ao sonho e ao amor pelo mar. Tinha a vida em cruzeiro; casado, filhos a caminho? Quando um dia, no tasco, lhe disseram que já tinha contado aquela história que levava já a meio, retesou cabos, enfunou e traçou novo rumo.

Cruzava o imenso atlântico norte em direcção ao Lavrador, seguindo, mais cá, mais lá, o trajecto que Eric - o Vermelho tinha feito 1000 anos antes. Vencido pelo que para outros é conquista, a estabilidade e a certeza no amanhã, tomava de frente o frio, o sol e sentia o tamanho do navio debaixo dos seus pés; sumiram-lhe dez anos do rosto. Enorme foi o salto, do seu bote para o Adélia Maria, um Lugre construído nos estaleiros da Gafanha da Nazaré, e que, como sentirá na pele, virá a consumir-se não muito longe dalí, obrigando os homens a saltar do escaldante para o frígido. Recordava o dia em que contou, de chofre, que tinha aceite comissão na faina maior. Chorou-lhe a mulher, empinando-lhe a barriga; chorou a mãe, mostrando-lhe as roupas pretas e o broche que não largava; choraram os irmãos, apontando razões que os envergonhariam mais tarde. Ficou firme, só; pois tamanho egoísmo para a solidão empurra. Tinha de ser. Para este homem, mais um dia igual, seria o último dia findo o qual já não poderia ser salvo. Partiu; aprendeu tudo de novo; passou amavelmente de comandante a comandado. Nem seis meses depois: Áh mar, prepara-te para falares. Estou pronto! A mudança deu ao homem mais do que um novo sentido à sua vida, deu-lhe uma vida nova, mais plena e mais arrojada. Excedia-se a cada captura, orientava-se no gelo como um inuit, captando as suas subtis variações de tom e o seu ligeiro oscilar, fazia do frio mola para a vontade de ser melhor. Era um homem feliz que deixava saudades na praia de cada vez que saía, e que no regresso trazia histórias; histórias de um outro mar, um mar enorme, bruto, generoso, feérico e com tanto, tanto para contar.

Nota: Aqueles que se tentarem a verificar nomes e datas, não o façam. Não o façam que isto é uma história. Faço esta chamada por saber que há quem a tenha dificuldade em compreender precisamente isso.

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