O Adélia Maria esfumou-se e com ele terminou para o homem da praia a faina maior. Até voltava, mas o declínio da indústria, os stocks exauridos, a concorrência de frotas melhor apetrechadas, condenaram a frota portuguesa de bacalhau a um lento mas seguro esquecimento. Ficam as memórias dos que por lá passaram, enquanto por cá andarem e fica o Museu marítimo de Ílhavo. Edifício que pela sua arquitectura apenas merece demorada visita; por ser a memória da faina maior, merece o nosso carinho e apoio. Levemos lá os filhos, os avós, para que se entendam, para que não se quebre a linha do ser português, daquele que, como disse o padre António Vieira, tem um palmo de terra para nascer e o mundo inteiro para morrer.
Capitaneava um arrastão ao largo da Mauritânia. A passagem para as águas quentes e para os dias fogosos, trouxe-lhe alívio às penas que começava a sentir, fossem as da idade, fossem as medalhas pelos momentos difíceis por que passou. Superou as muitas diferenças que o tipo pesca apresenta, redes eram redes, fossem de cerco ou de arrasto, peixe era peixe, fossem fanecas ou bacalhaus ou agora, linguados, chernes, espadims e solhas, e que mais haja, pois o mar era rico e deixado em pousio já que o povo de lá, ao contrário do nosso, voltou-lhe as costas, preferindo navegar as dunas, votados à imutável Meca. Achou mais estranho capitanear, mandar ao invés de fazer; coordenar era simples, sempre o tinha feito, mas dizer, faz isto, faz aquilo, sem justificar pelo exemplo, soava sempre estranho e distante do que se achava. No entanto estava estranhamente só. Era um mestre respeitado; conheciam a sua história e as suas histórias, sabiam bem a têmpera do homem que ali estava, o olhar de mar que trazia. A ordem rolava pelo barco como uma onda de maré, empurrando todos para a sua observância, não havia desmandos, nem dúvidas. Após um breve período a queimar gasóleo (gasól), o arrastão atestava as arcas e todos estavam felizes.
De regresso a casa, netos ao colo, contava histórias de diabos marinhos maiores que automóveis, de peixes mais velozes que o vento, de ventos quentes que levantavam as dunas da praia. Eram histórias de dias brilhantes e de noites cintilantes. Dizia que aquele mar não se importava se era dia ou noite, brilhava sempre, ora lhe dava o sol e dele fazia cobalto, ora lhe caia a noite e a lua o pavimentava de estrelas. Na roda da proa, mão na amura, outra segurando o cigarro, ouvia o mar; conversavam, confessavam-se.
Onde está este filho do mar? Que aconteceu para estar sentado na pedra, esperando que o mar os leve, triture e dê nova existência? Apanhou uma doença, não sei, qualquer coisa vertiginosa; se olhar para o lado, ou se mexer mais depressa, tem tonturas, perde o equilíbrio e cai. Bem disfarçou, foi aguentando, sentava-se na cabina e de lá vociferava toda a amargura que o ia comendo. Um dia caiu, mesmo ao meu lado. Hospital, médicos, e já sabe; chegado aos médicos, fica-se mesmo doente. Proíbiram-no de embarcar e logo morreu. Está ali que ninguém o anima.
Cumprimentei os presentes e despedi-me. Parecia estar a sair de um velório; na tasca muda, nem os copos batiam, nem o rádio tocava. Com um medo terrível de ser desiludido, oh egoísmo, sentei-me ao lado do homem da praia, na areia.
– Olá Pedro.
– Sabe o meu nome?
– É claro que sei. Conheço-te desde pequeno. Tu gostas da praia, mas não do mar. Estive, ano após ano, à espera que viesses falar comigo. Sou assim tão mau?
– Não mestre, não é. Veja bem: achava que se viesse falar consigo, você levantava-se e, sem dizer nada, levava a praia embora. Mestre, porque dizem os homens que morreu? É por não poder pescar?
– És ingénuo Pedro, ou então contaram-te mal a história. Gosto da pesca, mas tanto se me dá. O que me dava a vida era o mar e as histórias que ele me contava. Falava com o mar como tu falas contigo próprio. Imagina agora que deixavas de falar contigo. Sentes a dor, a solidão? É por isso que aqui estou, para que ele não se esqueça de mim; porque sou um cobarde, sabes? O meu maior desejo é juntar-me ao mar, abraça-lo e ser abraçado, mas não consigo. Apenas espero que ele me leve.
Capitaneava um arrastão ao largo da Mauritânia. A passagem para as águas quentes e para os dias fogosos, trouxe-lhe alívio às penas que começava a sentir, fossem as da idade, fossem as medalhas pelos momentos difíceis por que passou. Superou as muitas diferenças que o tipo pesca apresenta, redes eram redes, fossem de cerco ou de arrasto, peixe era peixe, fossem fanecas ou bacalhaus ou agora, linguados, chernes, espadims e solhas, e que mais haja, pois o mar era rico e deixado em pousio já que o povo de lá, ao contrário do nosso, voltou-lhe as costas, preferindo navegar as dunas, votados à imutável Meca. Achou mais estranho capitanear, mandar ao invés de fazer; coordenar era simples, sempre o tinha feito, mas dizer, faz isto, faz aquilo, sem justificar pelo exemplo, soava sempre estranho e distante do que se achava. No entanto estava estranhamente só. Era um mestre respeitado; conheciam a sua história e as suas histórias, sabiam bem a têmpera do homem que ali estava, o olhar de mar que trazia. A ordem rolava pelo barco como uma onda de maré, empurrando todos para a sua observância, não havia desmandos, nem dúvidas. Após um breve período a queimar gasóleo (gasól), o arrastão atestava as arcas e todos estavam felizes.
De regresso a casa, netos ao colo, contava histórias de diabos marinhos maiores que automóveis, de peixes mais velozes que o vento, de ventos quentes que levantavam as dunas da praia. Eram histórias de dias brilhantes e de noites cintilantes. Dizia que aquele mar não se importava se era dia ou noite, brilhava sempre, ora lhe dava o sol e dele fazia cobalto, ora lhe caia a noite e a lua o pavimentava de estrelas. Na roda da proa, mão na amura, outra segurando o cigarro, ouvia o mar; conversavam, confessavam-se.
Onde está este filho do mar? Que aconteceu para estar sentado na pedra, esperando que o mar os leve, triture e dê nova existência? Apanhou uma doença, não sei, qualquer coisa vertiginosa; se olhar para o lado, ou se mexer mais depressa, tem tonturas, perde o equilíbrio e cai. Bem disfarçou, foi aguentando, sentava-se na cabina e de lá vociferava toda a amargura que o ia comendo. Um dia caiu, mesmo ao meu lado. Hospital, médicos, e já sabe; chegado aos médicos, fica-se mesmo doente. Proíbiram-no de embarcar e logo morreu. Está ali que ninguém o anima.
Cumprimentei os presentes e despedi-me. Parecia estar a sair de um velório; na tasca muda, nem os copos batiam, nem o rádio tocava. Com um medo terrível de ser desiludido, oh egoísmo, sentei-me ao lado do homem da praia, na areia.
– Olá Pedro.
– Sabe o meu nome?
– É claro que sei. Conheço-te desde pequeno. Tu gostas da praia, mas não do mar. Estive, ano após ano, à espera que viesses falar comigo. Sou assim tão mau?
– Não mestre, não é. Veja bem: achava que se viesse falar consigo, você levantava-se e, sem dizer nada, levava a praia embora. Mestre, porque dizem os homens que morreu? É por não poder pescar?
– És ingénuo Pedro, ou então contaram-te mal a história. Gosto da pesca, mas tanto se me dá. O que me dava a vida era o mar e as histórias que ele me contava. Falava com o mar como tu falas contigo próprio. Imagina agora que deixavas de falar contigo. Sentes a dor, a solidão? É por isso que aqui estou, para que ele não se esqueça de mim; porque sou um cobarde, sabes? O meu maior desejo é juntar-me ao mar, abraça-lo e ser abraçado, mas não consigo. Apenas espero que ele me leve.
Comentários
Gosto de ler com calma.
Mas li pelo menos o nº. 1... e, pelo caminho atrevi-me a "roubar-te" um poema... porque a mim Também me Apeteceu...
Algum inconveniente diz, que será de imediato apagado...
Um abraço ;)