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O homem da praia (3)

O tempo, a experiência e a destreza fizeram do homem um pescador exímio. Após a reforma do pai, passou a comandar a companha de irmãos. Todos encararam esta usurpação como algo natural, dado que, andava ainda o pai no barco, e já era ele quem escolhia pesqueiros, avaliava marés, antecipava borrascas; igualmente o que negociava preços de iscas e cabazes, aparelhos e combustíveis. Depois da tragédia com o barco do Zé Russo, de que só um caixote foi encontrado, obrigou os irmãos, e ele, a vestirem coletes salva vidas e a, no sossego de uma enseada, deitarem-se ao mar, barco virado e tudo, como treino para horas mais difíceis. A sua companha era a mais bem sucedida. Peixe, muito peixe, graúdo e variado, levantaram, àquela família, o jugo pesado do armador. Compraram barco e aparelhos; eram livres. À tarde, enquanto se remendavam as redes, calafetavam os barcos ou simplesmente se bebia vinho por entre batidas de sueca, o homem contava histórias. Todos os dias contava uma diferente. Todas sobre o mar. Todas pintavam quadros, imprimiam fotografias nas mentes de quem as escutava. E eram indeléveis. Tu, dizia um, que nem aqueces-te o banco da escola, como é que tens tantas histórias para contar? Sim, onde estava a fonte, qual era a musa? Donde brotava tamanha prosa que, como disse outro, em momento único de abstracção comparativa, mais parecia vinho fino a correr da pipa do tasqueiro. O homem, agora indubitavelmente, homem, dizia apenas que o mar lhas contava.
Um homem pouco faz ao mar. O mar faz muito a um homem. Anos de mar fazem um homem forte e determinado; momentos no mar reduzem um homem a pouco mais que um rato. O mar domado é domador; é lavoura invisível, de frutos duvidosos; é mãe que castiga uma só vez. Do muito que o mar talha nos homens, outro tanto lhes depositará, como o construtor que entalha, sulca e aplaina, para depois cobrir de massa, calafetar e pintar, transformando a massa informe das madeiras amontoadas em barcos e canastras, mas também em tectos, mesas e cadeiras. O que é calhau disforme e abrupto, pode o mar, vontade tenha, burilar e polir, dar enlevo ao que é pardo, relevo ao que é cavo. Poderia muito bem ser o mar a talhar este homem com as suas histórias. Perguntavam-lhe depois em que altura o mar lhas contava, pois que nunca estava sozinho e nenhum dos irmãos as ouvia. Nunca respondeu a essa pergunta, ficando amuado como um miúdo, e, de repelão, começava a mandar este e aquele trabalhar e este e aquele para esta ou aquela partes. Posso apenas imaginar, sem qualquer certeza, que no mundo não há apenas saltos qualitativos, mas também quantitativos que nunca isolamos; que entre a noite e o dia não há nenhum momento em que deixou de ser noite e passou a ser dia, mas que há pouco era dia e agora é noite. Pois era precisamente nesse momento, inexistente para a grei, que o mar contava uma história a quem dela se destacava. Posso apenas imaginar que era naquele momento, não antes, nem depois. Era num bater de onda no bordo do barco, num peixe que salta, de alegria ou pavor, dependendo do lado da rede que encontra, numa rajada de vento mais acentuada, no farol que fulge ao longe, na onda que cintila, na estrela que treme, no remo que fere a água, na candeia que empardece engolida pela bruma.

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