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A mostrar mensagens de 2007

Fim

Como tudo que acaba bem, o zigurate acaba sem sobressaltos. É a hora dos Vampiræ .

Infecção 1

Sempre fui um vampiro. Durante mais de 10 000 anos existi numa não vida, como um não ser. Era perfeito, era equilibrado, era belo na certeza das coisas eternas. Eras passaram por mim sem que desse conta ou sentisse sequer cansaço ou fastio. Renovaram-se, evoluíram, homens e demais bichos, moveram-se montanhas, secaram e encheram-se rios. Tudo perante mim surgia, por mim passava e por fim desaparecia. No ininterrupto ciclo da existência só eu permanecia. Sem ser um Deus, era mais do que um homem; tendo sido um homem, cumpri a aspiração destes, libertando-me das grilhetas do efémero. Já me tinha esquecido de como era sentir a vida; já se apagara o pulsar do sangue nas veias, da fome, do calor ou do frio, do chão duro sob os pés; já tinha abandonado o desejo de possuir; já tinha entregue a paixão de ser; já tinha perdido a memória dos filhos que vi nascer e criei. Era uno com o mundo, embora ele me temesse e amaldiçoasse. Não queria o mal dos homens, amava-os na condição de alimento, na c

Asas

Observavam-nos a bater as asas num frémito desengonçado; ela, ainda na penugem, dava com elas no ar e pouco mais; mesmo assim, a força e a tenacidade postas na brincadeira, deixavam entrever uma lutadora; mais à borda, o mais velho ensaiava batimentos que produziam resultados; elevava-se uns centímetros acima do ninho mas logo fechava as asas ao sentir a falta dos gravetos e penas debaixo das garras que, por ora, ainda se podiam considerar fofas; quer um quer outro demonstravam segurança e potencial impensáveis à apenas uma geração; felizmente comuns nesta que se quer de um novo paradigma de conhecimento e de um muito velho paradigma de amor; a mãe voltou-se para fora do ninho e, com um suave impulso, mergulhou no abismo de pedra; ganhou velocidade e abriu as asas, fez uma curva para a esquerda e começou a subir, a subir, a subir; os três olhavam a mãe, lá em cima, num voo meigo e plácido, de bem com os ventos e com as correntes; era tão certa como o nascer do sol, segura e diligente,

1. O suicídio por hemorragia

Notas prévias e importantes (volto a lembrar): 1º Este texto é um exercício de criatividade. Não pretende, nem poderá, retratar situações reais. 2º Este texto não existe fora da cabeça de quem o escreveu e esvanece no momento em que quem o lê termina cada palavra. 3º NÃO ACONSELHO NINGUÉM AO SUICÍDIO. Na minha opinião, é sempre melhor VIVER. Não procuro com este texto – ou outros –, levar, conduzir, apoiar ou encorajar o suicídio de quem quer que seja. 4º Se te queres matar, não deixes na carta que fui eu quem to aconselhou. Procura ajuda. VIVE! [Hemorragia – do Lat. haemorrhagia < Gr. haimorrhagia, (s. f.), é o derramamento do sangue para fora dos vasos sanguíneos.] Pousou a caneta, sem a tapar; pegou na folha e dobrou-a em três, cuidadosamente; meteu-a no envelope, sem pressas; humedeceu a boca demoradamente e lambeu a aba do envelope, devagar, para lá e para cá. Ficou-lhe na língua o gosto a cola de farinha, e soube-lhe a ela. Lembrou-se dela como se fosse esta a ultima vez q

Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido

Mesmo não sendo principes, vale muito a pena ler e concluir pela nossa cabeça. Só pela nossa cabeça. MAQUIAVEL, Nicolau. Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido In: O príncipe. (trad. Olívia Bauduh) São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores). Excerto d'O Príncipe (Cap. XVII) de Nicolau Maquiavel Continuando na apresentação das qualidades mencionadas, digo que cada príncipe deve preferir ser reputado piedoso e não cruel; a despeito disso, deve cuidar de empregar adequadamente essa piedade. César Bórgia , embora tido como cruel, conseguiu, com sua crueldade, reerguer a Romanha, unificá-la e guiá-la à paz e à fé. O que, bem analisado, demonstrará que ele foi mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à fama de cruel, permitiu a destruição de Pistóia. Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel para manter unidos e com fé os seus súbditos, pois, com algumas excepções, é ele mais piedoso do que aqueles que, por clemência em dem

Maio

Passava ontem na rua e vi um velho Ford Taunus, daqueles que revolucionaram o mundo automóvel ao saírem equipados com quatro velocidades para a frente e uma marcha-atrás. Vi o velho Ford, dizia, com um frondoso ramo de maias entalado em cada um dos pára-choques. Olhei em volta e nada. Tudo como nos outros dias. Se alguém tinha plantas à janela, era porque as ali tinha em Abril e as terá, salvo de secarem, em Junho. Vasos de florinhas viçosas mas sem memória, floreiras cheias de sardinheiras cheirosas mas sem glória, trepadeiras que lentamente procuram asfixiar as casas, no seu abraço paulatino e desconcertante. Maias, nem vê-las. Só as colocadas no velho Taunus, pertencente, digo eu, a um homem tão anacrónico como a viatura que teima em manter, mantinham viva a tradição da noite do Carrapato! Pena ter-se, como tantas outras, perdido a tradição de proteger a casa com os raminhos de giesta florida. As ruas, por muito urbanas que fossem, por muito que por lá passassem carros e gente apres

25 de Abril Sempre

— “Hoje não vou à escola, mãe?” — “Não, filho. O teu pai ligou e diz que anda uma revolução na rua.” — “Revolução, mãe?” — “Revolução, filho.” Fiquei logo a gostar do 25 de Abril. Estava uma dia lindo, soalheiro, pouco dado a abris de águas mis. Passou devagar, com o pai a telefonar para casa dizendo que tudo estava bem, para a mãe ver a televisão e ouvir a rádio. [Abro aqui um parêntesis, recto, para esclarecer algo que acho odioso e que precisa ser mudado por quem pode; só pode dizer-se ‘ouvir a rádio.’, pois ‘ouvir o rádio’ é prestar atenção ao que um electrodoméstico diz; já ‘ouvir a rádio’ é escutar o que as diferentes emissoras nos fazem chegar via ondas hertzianas; senhores do mundo, orientai vossos esforços para a resolução deste pungente problema linguístico]. Soube também pelo meu pai que o povo apoiou o golpe (sim, foi a golpe; que mesmo podre não caiu) logo que as primeiras notícias circularam e se concentraram viaturas blindadas em redor do quartel general na Praça da Repú

Acerca da dor

Passaram nove anos. Por vezes parece que passaram mil e que tudo está coberto com uma camada de pó, o pó dos tempos que esbate o outrora fulgente e que suaviza o então agreste. Por vezes parece que passou tempo algum. Disse-me então um amigo, mais experiente nisso de perder um pai, que é ferida que nunca sara. Sara; mas deixa uma cicatriz pronunciada, funda. Por vezes tão horrenda que nos é insuportável encara-la. Outras vezes, e felizmente quase sempre, não é mais do que o horizonte do que ficou para trás. Ele era espinosista sem o saber. “O meu Deus é a Natureza. O teu é o que tu quiseres que seja”, dizia. Assim, a sua morte terá sido uma rápida libertação, uma comunhão com o Deus natural. Voga já o espírito, liberto das cinzas materiais que, por único pedido, se reduziu o corpo desalentado. Ainda sinto a caixinha de madeira nos meus braços; ao colo. Senti verdadeiramente, enquanto o jardineiro plantava a roseira que haveria de assinalar a sua morada, que o segurava. Liberto de massa

Ladrar

Porque não ladra o ladrão? Porque não rouba o cão? Ainda que tire; não rouba. Pois não? Haverá neurónios na claque dos super-dragões? Quando não há jogo; onde se escondem? Onde se cultivam os manjericos? E os martelinhos; virão da china? Alguém me poderá dizer que raio anda o Rui Costa a fazer pelo benfica? Onde tinha o Pinto da Costa a cabeça quando se juntou à Carolina? Onde? Onde? Na Carolina, pois. Quem achar que o Herman é o maior, ponha o dedo no ar. Quem achar que os outros, passados 5 episódios, já disseram as piadas todas, ponha o dedo no ar! Qual será o hobby mais deprimente do mundo? Será este o texto mais deprimente de sempre? Foda-se.

Levantar

Gosto de me levantar cedo. Antes mesmo do Sol. Não gosto de ter de empurrar o lençol e sentir o fresco do ar do quarto. Gostaria de acordar já levantado, lavado e vestido. Alucinações, já falei disso, eu sei. Só que detesto ter de aprumar o corpo contrariado para fora da cama. Só a chibata de algum compromisso ou a cenoura de um dia belo lá fora me impelem a saltar da cama. Geralmente preciso de várias tentativas e de alguma motivação radiofónica para me levantar. Não faço nada sem comer bem. Comer bem é, para mim e pela manhã, tomar chá com uma nuvem de leite, comer pão com mel ou com queijo. Segue-se um café pausado, a pausa antes de tudo. Sentado no velho cadeirão de couro olhando o vazio, ou de pé, olhando a rua através do janelão da varanda. Em pé, vou controlando o progresso do Sol, se titubeia ou se vai firme no seu curso. Serve-me esta primeira pausa para pensar o dia e o que nele tenho e posso fazer. Serve também como rastilho para a primeira surpresa do dia. Já na rua, surpre

O homem pequenino

O homem pequenino olha com cara de mau. Tem aquele olhar desconfiado de quem julga que estão sempre a falar dele. Olha para os outros como se lhes fosse às trombas. O homem pequenino só sabe falar de carros ou de gajas. Quando não são gajas, são carros. Pode ser um doutor, um engenheiro. Pode ter estudado muito, mas não aprendeu nada. Pode perceber de muita coisa, mas não sabe nada. O homem pequenino amua. Fica estragado se lhe apontam as pequenas falhas. Levanta-se enfunado e volta as costas a toda a gente. Desaparece levando, contrariada, a sua pequena multidão. O homem pequenino é nojento na sua superioridade. Trata os demais com desprezo, fala por favor e passa pela vida como se fosse um frete. O homem pequenino coça o cu como toda a gente. Mas ai de quem disser que o viu coçar-se. Diz que não, insurge-se, ameaça e justifica as unhas negras com o trabalho no campo que não tem. O homem pequenino nu, é horroroso. Mas isso vocês já sabiam. O homem pequenino só come merda. Até o que be

Partida

Tenho uma amiga que está de partida. Todos estamos de partida, é inevitável. Mas ela tem já próximo o horizonte e, sei lá, não estará já a distinguir coisas ínfimas e grandiosas no que para nós é fria linha, mundos novos, conhecidos de antigamente, os que ainda não existem, como tudo se encaixa tão bem. Tenho uma amiga que sem conhecer bem, me encantou, com que me sentava a almoçar, a sorrir, a planear terapias de riso, sorrindo. Conversávamos a sorrir, era sempre assim, sorrindo. Adeus Elisa, despeço-me aqui, sorrindo, antes de partires, sorrindo, antes do egoísmo supremo que é a dor de perder alguém. Vou ver-te à mesa, sorrindo, vou ver-te com o tabuleiro de chá na mão, sorrindo, vou ver-te a sorrir, sorrindo. Pedro

O início de Tudo

No tempo em que nada havia Nem mesmo tempo que se contasse Vogava Deus como bem queria Sem pouco que a incomodasse Olhava com olhos que não tinha Para o que inda não criara E grande tristez’à mente vinha Por tudo quanto não se passara E vendo já negro o fim Do que não começara Arriscou mesmo assim Frase que se exara: FAÇA-SE LUZ! E tudo criou Partiu o negro capuz E o universo rebrilhou Depois disso, ficou cansado E partiu para nenhum lado É procurada desde então Por homens de fé e de razão Tarefa que é escusada Porque não quer ser encontrada

Manual do Suicida - início

Notas prévias e importantes: 1º Este texto – e os que eventualmente lhe seguirão –, é um exercício de criatividade. Não pretende, nem poderá, retratar situações reais. 2º Este texto não existe fora da cabeça de quem o escreveu e esvanece no momento em que quem o lê termina cada palavra. 3º NÃO ACONSELHO NINGUÉM AO SUICÍDIO. Na minha opinião, é sempre melhor VIVER. Não procuro com este texto – ou outros –, levar, conduzir, apoiar ou encorajar o suicídio de quem quer que seja. 4º Se te queres matar, não deixes na carta que fui eu quem to aconselhou. Procura ajuda. VIVE! Suicídio (sui = a si mesmo; caedes = acção de matar), é a acção de pôr termo, de forma voluntária e consciente, à própria vida. Lembro-me de alguém ter dito que se uma coisa merece ser feita, merece ser bem feita. Por lealdade ao objecto bem feito, bem executado do início ao fim, devemos uma consensualidade quanto ao cuidado posto na sua criação. Pode não se gostar, pode não se aprovar mas, perante uma obra perfeita,

Carta a um padre

Padre, Não me conhece mas eu conheço-o a si, de o ver e ouvir aqui e ali e de ler um pouco do muito que tem produzido. Se o encontrasse na rua talvez o interpelasse para o cumprimentar, como se faz a uma vedeta e depois contar a outros a pequena vitória. Talvez parecesse assim, mas não o seria seguramente. Se o encontrasse e cumprimentasse, seria para lhe partilhar uma grande dor. A dor de um homem que acredita na mensagem de Cristo mas que não consegue aceitar a doutrina da Igreja. Tenho dois filhos, a pequena de poucos meses e o maior de poucos anos. Ele diz-me que não gosta da catequese, que não acredita em Deus. E eu que lhe digo? O que me foi dito, que Deus é o meu maior amigo, e já está? Que o baptizei para lhe expurgar o pecado original? O que queria mesmo dizer-lhe, é que Deus é indiferente aos destinos dos homens, que é omnipresente mas não omnipotente, que está para lá do universo. Ou então, queria dizer-lhe "Deus sive natura" e saber explicar-lho convenientemente.

Quem sou eu?

Foi então que parti à procura De segurança e sabedoria Tremendo ao sentir a’margura Que a nova ignorância trazia Mas que mente esta que tortura Que martela a todos os momentos Que pinta de amena loucura Os mais inocentes sentimentos Mas quem sou eu afinal Que jovem já não sou Se o corpo dói e passa mal Do tempo que por ele passou Quem sou eu afinal Se a alma vendi Ao grande vendaval Dos dias que perdi Filho, irmão, pai, marido Sou sempre de alguém Haverá em mim escondido Algo meu e de mais ninguém? Algo mais que esta figura Alta, magra e desligada Que perde a compostura Sempre que é acossada Alguém a quem se possa plantar um chavão que seja Doutor da pasta grossa Estúpido de fazer inveja E perante o fim vizinho Morre a vontade sem o saber Ou segue um errante caminho Até Deus ou até o que houver Que fazer à vontade de mais ser Quando os anos se vão escoando Devo reprimir o desejo e me perder? Devo levantar âncora e sair errando? Se me perco, me encontram Se me encontro, desapareço Se fi

Culottes

Vivemos uma Belle Époque. O fim do século das luzes trará, é nossa convicção, um novo século de paz e prosperidade jamais vividas. A nossa bela capital, Paris, o centro do mundo civilizado, marca a força das nossas convicções. A torre, o gás, os carros e os aeroplanos dão, à grande cidade, uma acrescida superioridade tecnológica, um vértice de desenvolvimento que a há-de levar, pioneira, para lá do limiar do futuro. Uma nova mentalidade voga pelas mentes iluminadas dos nossos políticos, industriais e comerciantes. Implantada a república e afastada definitivamente a comuna, a cidade goza os prazeres materiais conseguidos pelo progresso técnico, pela industrialização, pelo comércio ultramarino e pela paz europeia, mas também os consentidos graças à redução da influência da igreja na sociedade, à abertura do povo francês a outros povos e culturas e a um renovado gosto pela vida e pelo belo, que desponta do facto de termos as mais belas e as melhor apresentadas mulheres da Europa. É nessa

Carta a Saddam

Caro Saddam, Desde o dia em que te quebraram a espinha, muitos outros viram, também, encurtadas as suas vidas. Morreram às mãos de assassinos, foram explodidos, esfaqueados, gaseados, mutilados, violados e mortos, atropelados, cilindrados, baleados, cortados. Demasiados foram executados por crimes que lhes foram imputados, perderam-se em acidentes de viação, ou aéreos, ou navais. Outros caíram e não resistiram, outros fizeram grandes golpes nas carnes ou saltaram de pontes e sucumbiram a um desejo tormentoso. Muitos morreram antes mesmo de nascer e tantos, tantos a quem a tão tenra vida foi arrancada por fome ou ‘malárias’, faz dela, a vida, uma coisa aparentemente inútil; banal. Tantos foram os que se foram, de tão variada forma, que rapidamente passaste a ser mais um, lá no meio dessa outra humanidade que procuramos esquecer. Outros porém partiram a seu tempo, deixando semente e memória, e esses, talvez inexplicavelmente, são os mais chorados e lembrados. Pois, porquê Saddam, porquê

Desculpa, mas…

Podia jurar que te vi chorar Podia jurar que foi por te amar Não me vi chorar nem poderia Porque a minh’alma ficou fria Se por amar te faço chorar Se por amar a alma me gelar Vou amar-te mais, tudo que puder Tudo o que o teu corpo quiser Tudo que a tua alma abraçar Para não mais te ver chorar

De volta à terra...