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Saber

Ouço todos os professores, de todos os graus de ensino, dizerem que os seus alunos nada sabem, que se não lhes pode alongar o discurso sem que se percam ou aprofundar as matérias sem que se confundam. Queixam-se ainda que vêm mal preparados, que não dominam os conhecimentos base, obrigatoriamente adquiridos em etapas anteriores e que não têm nem hábitos, nem métodos de estudo. Será fácil a qualquer um apontar um caso, ou dois, deste ou daquele licenciado, nesta ou naquela ciência, que é, como alguém já disse, um analfabeto especializado; poderá mesmo haver alguém que tome este ou aquele caso e o generalize ao todo da população licenciada; poderá ou não ter razão, dependendo de quem lha dá. Se apontarmos o olhar para os que não concluíram a escolaridade obrigatória, os exemplos serão porventura mais abundantes e mais marcantes, logo mais simples de apontar, referir e generalizar.
Que a educação vai mal; que o facilitismo impera; que as políticas postas em prática são sempre as erradas pelas boas razões ou as boas pelas razões erradas; que é o corporativismo que dá cabo do sistema; que são os pais que não ajudam. São estas e muitas outras as razões invocadas para justificar, ou pelo menos para aludir ao estado, dito caótico, da educação.
Importa-me porém sentir o evoluir das políticas educativas e dos resultados que delas advêm. Digo sentir porque disso mesmo se trata; não procuro números, deixei-me disso e sinto-me bem assim ? será mais fácil, será mais difícil, não o sei dizer ?, procuro antes perceber como foi o ensino, e não falo de educação, que os meus avós e os meus pais tiveram, lembrar-me de quando fiz a primária há 30 anos, na transição entre regimes e, por fim, acompanhar o meu filho que termina no ano lectivo 05/06, o quarto ano. As minhas avós não foram à escola; os irmãos foram, todos os irmãos foram à escola, elas não. Os que iam à escola, como os meus avós, eram preparados para serem o que ? sem dúvida nenhuma ? iriam ser: bons portugueses, fiéis ao regime, assalariados cumpridores e diligentes. Os que se destacavam, fosse pelo cálculo, fosse pela fluência, de pouco ou nada lhes servia, a não ser que ingressassem num seminário, um luxo para a família pois implicava a perda de um salário, ou fossem tomados a cargo por algum padrinho. Notei pouca diferença ao perguntar aos meus pais como foi a escola deles; o carimbo do regime era mais marcante, mas, tanto quanto pude saber, os curriculæ pouco evoluíram. Porém, algo mudou bastante, eram menos os que não iam à escola e, família que mandasse os seus filhos, mandava-os a todos, tanto rapazes como raparigas. E isso é muito bom, é um progresso significativo. Ainda aprendi os rios e as linhas de combóio, que Portugal era um país enorme e que foi por nossa nobreza de carácter que os espanhóis não se extinguiram. Aprendi a matemática do merceeiro e do caixeiro. No quarto ano, fim da escolaridade obrigatória, apenas um entre vinte e tal rapazes, não prosseguiu para o ciclo preparatório. Quanto às raparigas nada sabia; andavam noutra escola ao lado, mas eram muitas e, pela primeira vez, juntaram-se rapazes e raparigas no primeiro ano do ciclo, e isso foi muito bom, foi mesmo bom.
Não me esqueci da escola do meu filho, já lá vou, mas antes procurarei pensar sobre o tipo de cidadãos que a escola foi formando ao longo do tempo, e pergunto: Porque é que vamos à escola? Porque é que os nossos pais não nos ensinam em casa? O que ganha uma pessoa escolarizada na sua capacidade prática de suprir as suas necessidades ou as necessidades da família que constituirá? Em que difere a sua dignidade da do escolarizado? Educará melhor ou pior os seus filhos? Terá maior ou menor carinho e dedicação por eles? Será melhor ou pior profissional? Pergunto ainda: olhando para trás, que cidadãos tem a escola vindo a formar? De que forma varia ao longo das gerações o nível de cultura, o sentido do dever para com a família, o trabalho e a sociedade? Um número que gostaria de saber, talvez por me ajudar a entender melhor uma realidade mais vasta e dificilmente quantificável, é qual a percentagem do total de activos escolarizados com reconhecida competência profissional? Concretizando, variará de forma sensível a percentagem de pessoas competentes entre o total dos seus pares se separarmos os profissionais entre licenciados, não-licenciados, básicos e analfabetos? Creio que a experiência pessoal e o bom senso nos diz que em todas as classes profissionais, independentemente do grau de alfabetização, há bons e maus profissionais, boas e más pessoas. Acho que, à parte de ser básico ou doutorado, há pessoas sábias, com uma consciência profunda das questões filosóficas que apoquentam os homens e outras com linhas de pensamento estruturado exaustivas e alicerçadas em áreas concretas do saber. Falta colocar ainda estas mesmas questões às diferentes gerações e averiguar se as respostas variam. Neste particular sinto-me algo inseguro, mas atrevo-me a dizer que independentemente de mudanças curriculares, da postura dos professores face aos alunos, da democratização da escola e do país e do alargamento da escolaridade obrigatória, pouco terá variado em termos reais, o aproveitamento efectivo, por parte dos alunos, daquilo que aprenderam na escola. O que um jovem resolve guardar e preservar na sua bagagem, rios, pontes e quadras, teoremas, tabuadas e lusíadas, varia em função do jovem e de quem ele é em função do seu grupo e das suas motivações pessoais. As escolas que temos tido ao longo das gerações, e as que teremos daqui para a frente, por si, pouco poderão fazer para o preparar para a sua vida e mudar a qualitativamente sociedade de que faz parte. Não digo que não sejam importantes, seria uma estupidez pensar isso, só inferior ao comentário que poderás ter proferido ou pensado ao leres a última frase. Do que tenho noção é que não é a escola que mais molda a sociedade, mas a sociedade que mais molda a escola e nela, sociedade, cada um dos seus elementos. Ilustro esta ideia da seguinte forma: um boneco ? aluno ?, está entre a escola e a sociedade, representadas por dois focos de luz. A luz mais forte é a sociedade, a menos forte é a escola. Apontadas na direcção do boneco mas em sentidos opostos, ambas projectam sombra no campo de luz da outra. A diferença é que a sombra no campo de luz da escola é mais marcada do que a sombra do boneco no campo de luz da sociedade. Quero dizer que escola e sociedade se interpenetram e complementam, uma provoca a mudança na outra, mas que a relação de forças não é igual e dificilmente o poderá vir a ser.
Dessa forma julgo que as alterações que nos influenciaram decisivamente e causaram mudanças qualitativas na sociedade portuguesa, foram, na geração dos meus pais as raparigas passarem a ir à escola em número praticamente igual ao dos rapazes e, na minha geração, a integração maciça das mulheres, com diferentes, independentemente do grau de instrução, no mercado de trabalho. Estes dois factores não partiram de nenhuma reforma do ensino, nem tão pouco da implementação de medidas pensadas para o efeito, foram antes reflexos de um novo regime e de reorganização da economia, emanações de uma sociedade que evoluía e, ao evoluir, assimila e ajusta-se. Podemos mesmo esperar muito mais destes factores de mudança. Vejo-nos a atravessar um estádio em que as mulheres ainda não têm, nas empresas, nas universidades ou na política, poder correspondente ao seu número; fala-se em quotas e paridade, mas julgo que isso não passa de remorso deles e ânsia delas para chegarem, por força de lei, ao que, mais cedo que mais tarde, será uma realidade incontestável.
Voltando à escola, agora a do meu filho, continuam as preocupações de antigamente a ser as de agora: o abandono escolar, o desinteresse pelas matérias e correspondente ? ou não ?, insucesso, a pouca adequação dos curriculæ à vida em sociedade e ao mercado de trabalho, o desencontro da vida académica com as motivações dos jovens. Outras haverá. Com o meu filho há meninos e meninas muito bons, há-os muito maus, há os que gostam e os que não gostam, os que são melhores a matemática, os que são melhores a português e os que são melhores a estudo do meio. Há 30 anos, tive um professor primário progressista que nunca me chateou por ser canhoto, que não batia só porque sim e que se preocupava em ensinar a ser e não só a saber/conhecer. Mesmo assim, não o reconheço nas professoras que o meu filho teve e tem, quer nos métodos, quer na postura. Mais difícil se torna encontrar pontos comuns entre os manuais de há 30 anos e os de hoje. Quanto às metodologias, nem vou começar. No entanto, os resultados de 30 anos de reformas contínuas parecem, para uns ter piorado o nível da educação prestada aos portugueses, para outros parece ter melhorado. É esta falta de consenso que me assusta, porque mais do que a falta de consenso perante a mesma realidade, é a não percepção de que é a própria análise que tem de ser mudada. Não é justo assacar à escola, aos professores e ao ministério responsabilidade pelo que se acha ser um insucesso. Também será pouco sobranceiro dizer que a culpa é dos pais, que não ligam porque não têm tempo ou não têm vontade.
Poderá pensar-se que a escola não se enquadra, em termos curriculares, com o que é esperado a um profissional, ou que as motivações, e vida fora da escola, dos jovens nada tem que ver com o que a escola tem para oferecer. Que deve adequar conteúdos face às vontades de cada um e às suas expectativas futuras. Pode até pensar-se numa escola tipo tropa, em que o pelotão é ritmado pelo máximo esforço que os menos aptos conseguem produzir. Mas a escola é de todos e para todos, para os que querem ser carpinteiros, astrofísicos, jogadores de futebol, balconistas, lavradores, académicos, banqueiros, pais e mães. Ajusta-la às motivações e expectativas de cada um é aniquilar a escola; se os jovens deploram a matemática e recusam a leitura dos mestres, é por culpa da escola e dos seus métodos? O meu filho reclama do peixe à mesa, veementemente. Deverei corta-lo da ementa ou passar a dar-lhe sempre aqueles biscoitos de peixe? A comparação é simplória, eu sei, mas do meu ponto de vista, cristalina.
Será seguro dizer que, comparativamente com os parceiros europeus, os indicadores de insucesso, de abandono e da taxa dos que concluem o curso superior, não são famosos. Mas, tirando a produção de cortiça e a exportação de craques futebolísticos, em que é que somos famosos? Direi que a sociedade que temos, que somos e construímos, tem défices estruturais que urge resolver. Resolver o que sabemos estar errado ou incompleto e nos envergonha é um trabalho para todos os elementos da sociedade, a todos os níveis e para todos os dias. Esperar que alunos melhorem a sua performance académica, se tornem mais cultos e sabedores por via exclusiva de reformas do sistema educativo não, quanto a mim, é a forma correcta de fazer as coisas. Pois reformas temos tido porventura demasiadas. Mais aulas, menos aulas, mais matéria, menos matéria, mais escolaridade obrigatória, menos exigência avaliativa. Poderá ser esta como qualquer outra, a altura de deixar a escola fazer o que bem sabe e começar a tratar de assuntos que nada têm a haver com a educação, como por exemplo, acabar com as colocações de professores por concurso.

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