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A mostrar mensagens de 2005

O carro novo

Xico comprou um carro novo. Fiat Uno Evolution de 89. Comprou-o usado num desses stands de automóveis a céu aberto, daqueles: PROCURO NOVO DONO. Quem o vendeu, afiançou-lhe que a dona era uma professora de português, solteirona, que uma vez reformada, deixara de dar uso ao carro. – "Aquilo era de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Fazia uns 2000 kms por ano; nada mais!" Orgulhoso da sorte que teve, dada a raridade da situação apresentada, tratou da papelada, hipotecou-se e lá levou o carro para casa, melhor dizendo, para a porta de casa. Estava um mimo. Cheirava àqueles pinheirinhos verdes que se penduram na manete do pisca-pisca ou então do retrovisor para se obter o duplo efeito de melhor dispersão do aroma e enfeite natalício. De facto, entrar no Uno era uma experiência sensorial única; tirando um ardor no fundo da garganta e um lagrimejar compulsivo, os asmáticos e outros alérgicos deveriam munir-se da respectiva bombinha, aquele carro cheirava mesmo bem. Os est

Os meus filhos só se portam mal quando estou mal disposto

"Os meus filhos só se portam mal quando estou mal disposto", dificilmente poderá ser qualificado de interessante, pois que de interessante terá pouco, porquanto, numa rápida apreciação, se extingue em si mesmo. Parece-me óbvio que o exercício da tolerância será mais fácil estando o espírito sereno e o corpo descansado. As actividades dos miúdos, se buliçosas e estouvadas, colidem com a pressa auto imposta do, dito, ritmo semanal e com o descanso do guerreiro do final do dia. Pouco mais haverá a argumentar, pode discordar-se dos termos encontrados ou mesmo da razão dos argumentos apontados, mas julgo ser consensual que no que toca a atender a necessidades alheias, sejam dos filhos ou de quaisquer outros, será mais penoso se nós próprios nos encontrarmos carentes e a pedir a atenção que amiúde não conseguimos sequer expressar, quanto mais obter. Importará, no meu entender, ir um pouco mais longe, passar além da inevitabilidade do trabalho que nos reduz a macacos adestrados, das

Taxinomia

Nota prévia: Este texto contém linguagem capaz de ferir a susceptibilidade de mentes pouco menos que robustas. Se é para ficar chateado comigo, ou depois vir dizer que está muito desiludido, não leia. Não leia e passe ao texto seguinte, que embora mais subversivo, não fala de merda. Há 38 anos que cago. Segundo a minha mãe, caguei logo no dia em que nasci e já hoje caguei. Passei por dias em que não caguei, mas desses, não quero nem lembrar. Os dias, meses, anos que caguei, fazem de mim um cagador de cátedra. Haverá por certo outros muito mais cagadores que eu, com mais experiência, mais rodagem. Outros, ainda que mais novos, terão cagado mais do que eu, podendo, pela via da prática, serem considerados melhores cagadores. A posição no ranking que ocupo, pouco ou nada me preocupa, permitindo-me apenas perspectivar esta sociedade de cagadores, e nela, me posicionar. O que me leva a esta faina é a classificação da migada. Vivemos um mundo científico, onde tudo é sujeito de classificação,

Credo

Creio em deus todo poderoso, criador do céu e da terra, do universo e de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio que o fez num único impulso criador, instantâneo e de dimensão cósmica; depois descansou. Toda a dimensão física individual que possa ter tido se extinguiu nesse impulso, tendo esta incorporado o ser das coisas, sejam elas matéria, antimatéria, radiação, energia, vazio, constantes, matemática; a sua divina essência é, e será, a intangível razão e destino do universo. Todas as tentativas de provar a sua existência são fúteis e desnecessárias. Deus, independentemente de ser ou não reconhecido, é; a prova cientifica da sua existência não poderá nunca acontecer porque onde há ciência não pode haver deus. Creio em deus livre e completo que recua à medida que a vida avança, porque assim o planeou e deseja. Deus que somos, que nos rodeia e que nos determina, mas que acima de tudo que se deixa moldar e que dá lugar à ciência, é o mesmo que salva o mundo e nos leva o filho atrop

Serei apenas eu?

Pergunto-me a que propósito nos entra em casa, de forma contínua, informação contraditória acerca da gripe das aves. Noto que de um noticiário para outro a gripe está mais perto da Europa, mais um pobre Indonésio morreu, diz-se que se julga que um Tailandês contaminou outro; a mutação, a tremenda mutação que de tão apregoada chega a parecer desejada. Acho sobretudo estranho que os jornalistas de televisão demonstrem verdadeiro pânico ao entrevistar médicos ou responsáveis pela saúde do país; parecem ficar indignados quando lhes é dito que o perigo é remoto e ainda intangível, forçam as questões e, invariavelmente, caem em contradição ou pior, no ridículo. Que nos dizem os especialistas? Que o vírus existe mas é um problema de saúde animal; que só se transmite de bicho para humano por contacto próximo (cuidado violadores de galinhas); que as pessoas infectadas não contagiam outras; que na eventualidade de uma mutação que permita ao vírus propagar-se entre humanos, a sua virulência será

O mundo sempre pula e avança.

A minha avó paterna nas suas Histórias Verdadeiras, contava-me ao deitar retratos da sua vida. Vida vivida num tempo distante do tempo de um menino nos anos 70 e a anos-luz do tempo que hoje vivemos. Certo dia contou-me algo que deixou o povo do Porto em alvoroço e foi causa de cheliques, achaques e fanicos. Disse-me ela: – Tinha ido ao Porto, como fazia todos os meses, quando, por volta das três da tarde, o céu começou a ficar escuro. Os pássaros tontos com a falta de luz voavam o mais rápido que podiam para as árvores em grande chinfrineira. As pessoas paravam nos passeios e nas ruas, voltavam-se umas para as outras sem saber o que dizer ou fazer. Passada uma meia hora, o dia ficou escuro como breu e até os carros que por vezes passavam tinham que acender as luzes. Muitos gritavam o fim do mundo, senhoras finas e do povo desfaziam-se em lágrimas e caíam desmaiadas. Outras mais tolas, berravam que era a fome, peste e guerra que se aproximavam. Uma leiteira chorava porque se lhe azedou

Ate onde o pensamento levar

Falei há pouco com um familiar que foi literalmente empurrado pela mulher para a festa do Avante. Gajo refinado pelo trabalho e pelo contacto com estratos sociais que não o seu, fixaram nele uma aversão ao comunismo e aos comunistas, um quase McArtismo, que o leva a repudiar não só a ideologia, mas também os seus adeptos e o seu património. Embora avesso ao geral, é capaz de reconhecer valor ao particular. "Este comuna é um tipo porreiro". Ou então: "Os vermelhos sabem trabalhar nas câmaras". O mesmo se passou com a festa. Partiu triste como a noite, arrancado ao sofá ante a ameaça da suspensão dos deveres conjugais. Entrou no recinto achando que o prato do dia seria menino no churrasco. Sustinha a respiração e colava os braços ao corpo para não se denunciar e ser deportado, ou pior. Mas logo olhou em volta, descontraiu, impregnou-se do calor humano que o envolvia e esqueceu. Como quando, num dia de sol, se entra na garagem ou escadas do prédio, os olhos cegos a pri

Um novo olhar

Sempre achei, como gajo que sou, o acto da maternidade um verdadeiro nojo. Os gritos, o sangue, o suor e as lágrimas, o bebé todo porco. Uma verdadeira imundice, um mau começo para preparar o neo-nato, não vá a vida ser madrasta e assim, começando mal, já não haverá grande diferença para o que vem. O quanto me enganei. Se novamente me cruzar com imagens de um parto, irei vê-lo como um acto de absoluta entrega e amor supremo. A respiração profunda domestica a contracção, o caos desvanece perante a ordem de expulsão. Após horas de ansiedade e contracções, poucos minutos separam a mãe do filho, poucos minutos aproximam a mãe do filho. Respira, Respira. Ri, Ri. Mais uma contracção, respira. Agora, puxa! E ela nasceu. E todos riem, dão graças. Só ela chora. Primeiro como que a experimentar, depois com mais certeza, até o seu choro ser o único som audível. É um choro bom, reconfortante. Tem frio, vem suja de gordura e sangue, é linda. As lágrimas rolam, a garganta fecha. O mais cúmplice dos

Pôr a vida a mexer

Os antigos gaulases achavam que o céu lhes podia cair em cima, fazendo disso temor maior. São aval desta verdade histórica e indubitável, a obra de Goscinny e Uderzo, documentando a sociedade gaulesa em ricos pormenores de usos e costumes, organização política, negócios estrangeiros, arte da guerra, conhecimento científico, cultura musical e arquitectura, relacionamento social, actividades económicas e outros aspectos de uma civilização que doutra forma estaria esquecida. A ruína do firmamento era para estes irredutíveis individuos a catástrofe das catátrofes, o fim a ferro e fogo, o olvidamento. Seria pois admissivel que, como outros povos com semelhantes medos, tratassem de aplacar a eventual e sempre politicamente oportuna cólera de Toutatis com repetidos e sanguinários sacrificios. Goscinny e Uderzo são omissos na sua obra quanto a essas práticas, por certo não encontraram provas arqueológicas de tais actos que, de tão importantes, estariam documentados nas pedras. Se tamanho medo

beija-me

beija-me uma vez beija-me sete beija-me setenta vezes vezes sete que te beijo uma vez te beijo sete beijo-te setenta vezes vezes sete amor que nunca esquece o beijo mais fecundo que só ao amor obedece sete vezes, vezes o mundo

Ceifeira de Guerra de Leonardo da Vinci

Ceifeira de Guerra Colocado por zigurate . A guerra é espanto A fome, purificadora A ditadura, harmoniosa E deus, esse, está morto Morto ele, morto por ele Tão morto que vive De tão vivo que morre Morro sem morte O cordeiro mostra os dentes O íbis exibe as garras Deus revela a negra fauce O tirano adormece crianças Perante todos sangrará o Porco, deitado no prato Preto da balança. No branco, cabe todo o resto. p az.

a conversa

pax mundi Originally uploaded by zigurate . já? sim, mãe. já. que fazes aqui? não te esperava senão daqui a muitos anos. eu sei. que se passou? não sei bem, mal tive tempo de me aperceber. desististe? talvez. sim, desisti. e eles? acho que ficaram bem. podemos vê-los? vem cá, vem ao meu colo. quero voltar a pegar em ti. mãe? sim. o pai? não mais o vi. acho que não está aqui. pena. queria conhecê-lo.