O Paulo era, sabia-mo-lo nós e sabia-o, ou não, ele, homossexual. E sabiam-no, dolorosamente, os pais, mas não o admitiam. A mãe até o empurrava para as meninas do grupo de amigos, e dizia às outras mães que seu o filho, na escola, era um D. Juan e não largava as miúdas. O Paulo não as largava mesmo; fazia parte do grupo delas, como uma delas. Partilhava com elas os segredos da idade e os gostos. Lembro-me de o ver abraçado a esta ou àquela amiga e pensar, como pensa quem tem quinze anos, na sorte que o gajo tinha por as miúdas o deixarem andar assim pendurado nelas. Mal sabia que, para elas, o Paulo Mariana (era esse o nome da sua mãe), não procurava nesses abraços o que procurariam o Pedro da Júlia, o Paulo da Helena ou o Tóni Seixas (Seixas porque da mãe dele, não me lembro do nome). Para o pai era tudo muito mais complicado, mas mais simples de resolver; nunca falava do filho. Os nossos pais, que formavam uma pandilha mais ou menos correspondente à pandilha dos filhos (outras seriam as actividades), entendiam bem o pavor do sr. Azevedo e, com um pavor solidário, nunca falavam dos filhos, seus ou de outros. Cá pelo bando juvenil, o Paulo Mariana era exemplo obrigatório quando o tema da conversa versava as, digamos, orientações sexuais alternativas. Putos, éramos desdenhosos e galhofeiros e, quase sempre, cruéis para o Paulo. Aliás, em resposta à mediocridade que é ser absolutamente normal, aquele que mostrasse ao grupo ponta de diferença, era alvo de chacota seguida de indiferença. Por ter leveza no andar e flores no falar, era gozado e posto de parte; da mesma forma que, por ter orelhas grandes e arrebitadas e por gostar de ler, também eu era gozado. Por isso, volta e meia, metia licença sabática daquele grupo de foliões das férias grandes, dos futebóis, da pesca nocturna e das travessias a nado entre eira e a baía. Essas minhas licenças, ao contrário do que poderiam parecer, nunca eram passadas a sós. Ou conhecia uns tipos, ou miúdas, estrangeiros e com eles entabulava conversações, ou passava as boas tardinhas com a Gina, que nos intervalos da malha e da atenção ao irmão mais novo, era bem marota, ou então, por vezes, mas não apenas quando todo o resto falhava, passava dias com o Paulo Mariana e mais dois ou três rapazes que, sei lá porquê, não se enquadraram na pandilha. Fazíamos basicamente as mesmas coisas, passear pela praia, jogar à sameirinha na areia molhada, jogar risco ou monopólio, rondar as searas de milho e as vinhas que havia para lá dos pinhais da Madalena, lançar-se do alto das dunas para o vazio e ser um pássaro por 2,3 segundos. As conversas eram as mesmas e a leveza no andar e as flores no falar passavam despercebidas. O Paulo era um dos nossos, ou pelo menos, um dos meus. Mas só passados muitos anos é que percebi isso. Só passados muitos anos é que soube o bem que me fez ser amigo do Paulo.
Mesmo não sendo principes, vale muito a pena ler e concluir pela nossa cabeça. Só pela nossa cabeça. MAQUIAVEL, Nicolau. Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido In: O príncipe. (trad. Olívia Bauduh) São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores). Excerto d'O Príncipe (Cap. XVII) de Nicolau Maquiavel Continuando na apresentação das qualidades mencionadas, digo que cada príncipe deve preferir ser reputado piedoso e não cruel; a despeito disso, deve cuidar de empregar adequadamente essa piedade. César Bórgia , embora tido como cruel, conseguiu, com sua crueldade, reerguer a Romanha, unificá-la e guiá-la à paz e à fé. O que, bem analisado, demonstrará que ele foi mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à fama de cruel, permitiu a destruição de Pistóia. Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel para manter unidos e com fé os seus súbditos, pois, com algumas excepções, é ele mais piedoso do que aqueles que, por clemência em dem
Comentários