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O homem da praia (4)

Mares diferentes ensinam coisas diferentes a homens diferentes. Ao da Murtosa, que o silêncio das imensidões árcticas é falsa calma; ao das Fidji, que o arpão não basta para o afastar o tigre; ao Nórdico, que há uma cilada atrás de cada onda; ao Caribenho, que a fartura dum mar de cristal é ilusória; ao japonês, que toda a tecnologia é pouca quando os Kami sopram da China. Mas há uma coisa que todos os pescadores aprenderam, seja qual for o professor, que o mar vence sempre, não adianta combatê-lo. O homem tinha aí uns dez anos de mar a sério. Saíram cedo, muito cedo, como de costume. Mar chão, firmamento tão limpo que mesmo sem lua se via quem à duna assomava; homem e irmãos preparados para uma madrugada pacata, quase de descanso, a pescar fanecas de quilo. Não era sempre, mas quando lhe batia e sem saber bem porquê, rumava a um pego e à linha, que outra maneira não aceitava, arrancava às funduras, gordas fanecas; Trisopterus Luscus que, por via da súbita quebra de pressão, visto habitarem entre trinta e cem metros de profundidade, encaravam os seus verdugos com os olhos quase a rebentar. Era já dia, pela hora, mas reinava ainda o petromax. Entretido a puxar um e outro peixes, não se apercebeu da nuvem negra que veio do oeste, a coberto da noite, tão grande que lhe tomou o lugar e atrasou a madrugada. Uma rajada maior puxou uma onda que sacudiu secamente o barco. Depregaram-se os olhos da captura e, postos no céu medonho e no mar barrancoso, bradou: "Larguem tudo!" Um dos irmãos ainda quis puxar uma faneca que já vinha pelo beiço mas foi secamente interrompido pelo irmão "Larga isso, caralho! Hoje morremos todos!" E não disse, valha-nos deus, porque deus não era para ali chamado; era entre eles e o mar, e iam morrer.
Mas não morreram. Não morreram ainda que lhes chorasse a mãe, ajoelhada na areia, dando tantos murros no peito por quantos filhos quantas mães perderam. Não morreram ainda que lhes berrassem as mulheres, agarradas aos filhos pequenos que choravam, não a falta do pai, mas o desespero da mãe. Não morreram ainda que lhes derramassem copos de vinho, os homens, exaustos de os procurar. Não morreram porque sabiam que o mar iria ganhar e porque, mesmo assim, não lhe viraram a cara. Sem lutar contra o mar, arrostaram-no, submeteram-se à sua fúria sem covardia. A água entrava e eles a devolviam, a corrente puxava e eles deixavam-se ir, a onda subia e eles mostravam-lhe a proa e os dentes. E não morreram... Mas foram ter longe, tão longe que passaram dias à deriva; livres do mar os naufragar que, reconhecendo o empate, lhes deu boa trégua, estavam agora a travar nova batalha com um soez adversário, o seu metabolismo. O mar alto não tem água que se beba. Apertavam as gargantas, gretavam as frontes, os lábios, tudo. Tinham fome, mas a fome não os matava, matava-os a sede. Ao quarto dia de deriva, já mais para cá do que para lá, foram recolhidos por um navio mercante e, dez dias após a tempestade, estavam de regresso ao mar.

Comentários

Anónimo disse…
não morreram?

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