Olhou para trás e já não via bem o Castelo. Já só via as colunas retorcidas do fumo das fogueiras das vigias, os seus clarões interrompidos pela passagem da guarda, e os vagos recortes da torre, da muralha e de uma ou outra casa fora de portas. Deu as costas ao lar e olhou para cima. Ainda lá estava. Tinha surgido há pouco mais de quatro luas e pareceu mesmo a cereja em cima do bolo que era a cavernosa melancolia que o tinha tolhido e que trazia a corte apoquentada. – Está triste, caminha só pelas veredas. – Julga de forma branda e desinteressada, nem parece o mesmo; austero, justo e firme. – No templo, chora; parece insatisfeito com os Deuses. – As preocupações eram genuínas. Um sentimento de grande desilusão e revolta o apanhara e perdera todo o interesse pela vida. A esposa, também ela devastada, tentava ainda ser mãe e confortava-o como podia. E ele ia atrás e esforçava-se para, de igual modo, a confortar; vê-los era como ver dois bêbados compensando a falta de equilíbrio de um, com a falta de equilíbrio do outro. Tal como o equilíbrio corporal dos bêbados, o seu equilíbrio emocional era constantemente posto à prova pela memória, cada vez mais exacerbada, daquela tragédia. Ao inconformismo e negação dos primeiros dias, sucedeu-se a fúria que o cansou e abriu passo à gigantesca melancolia que lhe carimbou a face, o andar, os ombros. Mal comia, só trocava de roupa por decreto e sentia que nunca dormia. Foi na última das muntas noites em que, farto de estar na cama, de respirar, se levantou e correu em desespero à varanda do quarto, para ser parado apenas por uma cobardia que o repugnou e deixou ainda mais triste e azedo. Quando finalmente os olhos puderam ver para lá das lágrimas, tirou-os do parapeiro da varanda de pedra e olhou a estátua equestre do jovem príncipe. Viu, mesmo diante de si, uma estrela sair do peito frio do bronze e subir ao firmamento. Aí ficou, munto queda, catrapiscando-o com o seu fulgor. Pela manhã inquiriu os guardas da vigia nocturna e demais povo que, por mor de velarem enquanto outros dormem, poderiam também ter assistido a tão raro fenómeno. Mas não, ninguém viu nenhuma estrela nova. E quando perguntava se a tinham visto sair do peito da estátua equestre do filho, recuavam e, curvando-se munto, acenavam negativamente e rapidamente se escusavam. Sendo quem era, não deixaria ficar o sucedido por ali e pediu especial vigília aos astrónomos e exaustiva documentação. A resposta foi polida mas firme: – Nada vimos. Tudo revolve em torno do mundo como os Deuses o determinaram. – Nem mesmo a esposa, na varanda, ao seu lado, a olhar para o prolongamento do seu braço, via a estrela, que de fulgir, quase lhe queimava as vistas. Desistiu de perguntar, achou-se perder o juízo, achou que colocaria a sua posição em risco se continuasse a perguntar pela estrela. Mas a estrela não desaparecia, dir-se-ia até que medrava, que ganhava forças e se preparava para fazer qualquer coisa. E ele também, fitava a estrela por breves minutos e adormecia tranquilo. Robustecera corpo e mente. Uma noite, há mais ou menos uma lua, a estrela começou a deslocar-se no sentido do mar dos hebreus. Primeiro devagarinho, arrancava lentamente e, sentindo-se desacompanhada, reassumia, por magia, a posição original. Uma noite foi mesmo decidida e na noite seguinte já quase não se via da varanda. – Que faço? – Pensou. Iria em seu encalço? Sim, deixaria tudo. Deixaria o túmulo do filho, o reino que tomou do pai, que pacificou e engrandeceu, o amor da esposa, para seguir uma estrela que só ele via, que ia para onde não sabia bem e que não tinha certeza se regressaria. O túmulo do filho não o enche; visita-lo é morrer um pouco. O reino? Poderia abandonar o trono e os leais súbditos? A esposa era igualmente amada e capaz de desempenhar as suas funções, o reino ficaria bem entregue. E ela… Tão amantes que eram, tão cúmplices se tornaram ao longo dos anos, ainda mais, nesta tragédia. Deixa-la seria verdadeiramente doloroso. E foi. Partiu com o coração partido pela separação e remendado pela esperança. Saiu só e discretamente, à noite, encalçando a estrela, rendido ao seu chamamento. Ao passar os portões da cidade, o louco do reino dele se abeirou e disse-lhe em sussurro: – Majestade; levai um presente, pois um rei encontrareis.
Mesmo não sendo principes, vale muito a pena ler e concluir pela nossa cabeça. Só pela nossa cabeça. MAQUIAVEL, Nicolau. Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido In: O príncipe. (trad. Olívia Bauduh) São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores). Excerto d'O Príncipe (Cap. XVII) de Nicolau Maquiavel Continuando na apresentação das qualidades mencionadas, digo que cada príncipe deve preferir ser reputado piedoso e não cruel; a despeito disso, deve cuidar de empregar adequadamente essa piedade. César Bórgia , embora tido como cruel, conseguiu, com sua crueldade, reerguer a Romanha, unificá-la e guiá-la à paz e à fé. O que, bem analisado, demonstrará que ele foi mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à fama de cruel, permitiu a destruição de Pistóia. Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel para manter unidos e com fé os seus súbditos, pois, com algumas excepções, é ele mais piedoso do que aqueles que, por clemência em dem
Comentários