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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2006

A estrada (4)

Levantou-se amarrotado e cansado; uma noite sem dormir tem destes encantos. Frente ao espelho, barba feita e banho tomado, continuava a pensar no motivo que lhe tirou o sono. A notícia da aldeia reconvertida deixou-o desconcertado, avivou-lhe um período da sua vida que terminou da pior maneira. Custou-lhe o emprego, a saúde, por pouco a sanidade. Demorou para lá de dois anos a levantar-se, a chegar ao dia anterior àquele. A música ajudou, os amigos também; lentamente o tempo foi depondo camadinhas de indiferença e vida tomou um inesperado mas agradável curso. Tornou-se músico profissional; as aulas de viola e violoncelo de quando era miúdo, serviram para naquela fase negra se agarrar a um velho contrabaixo comprado na Feira da Ladra e passar tardes perdidas em casa a fustigar as cordas ao desgraçado. Com o tempo, porque não era burro nem feito às canhas, tomou-lhe o gosto e aprimorou-se. Em menos de uma gravidez, nasceu um músico razoável, merecedor de contratos esporádicos para tocar

Trindade

Como pode algo que é uno ser, ao mesmo tempo, trino? Como pode algo, simultaneamente, ser Eu, ser Tu, ser Nós? O pensamento lógico/matemático impede-nos de pensar para além do Eu que sou Eu, do Tu que és Tu, do Nós que somos dois, que embora próximos, em comunhão, vivemos existências distintas. O que nos poderá, não digo provar, mas antes, fazer perceber para lá do óbvio, do declarado pelos que, não sendo niilistas, em pouco ou nada acreditam, fazer perceber sem recorrer a explicações metafísicas, que para além de gastas e sempre sujeitas a amplíssimas interpretações, mais atrapalham do que confortam, o que poderá, digo, fazer-nos dizer que aqui está algo que não vejo, que ninguém viu, que nunca ninguém mostrará aos demais, mas que sei que existe em igualdade com a matéria e que com ela se relaciona, influencia, modifica e é modificado. Por não se tratar de razão, de objectividade, tão pouco ter aparente repercussão física, não abundam exemplos ou mesmo pistas, sequer ares. Explicar ra

Bater

Que bom ser mau, Sacripanta, vilão. Andar na rua de pau, Sevandija, ladrão. Ver um gato e lhe meter Um pontapé e vê-lo voar. Deixa-lo a sofrer, Com a boca a sangrar. Pôr o trabalho de lado, E o sentido esquecer. Deixar o amigo especado, Manda-lo… Viver irresponsável e intensamente existir, só Ao mundo fechar a mente e o coração Para ser um monstro e não sentir dó. Ter pavor de mostrar que o terror é vão, Que toda a força é menos que chinó. Que em sonhos, é menino e morcão.

A estrada (3)

Curioso como o cansaço não é sempre igual. Vencidos os primeiros dez minutos da subida, penosos e estafantes, tão difíceis de ultrapassar que o fez pensar em desistir, via-se agora num outro nível de esforço físico. A estrada prolongava-se, aparentemente interminável, um evereste de terra batida. Assim era, aos olhos de um maratonista da segunda circular, aquele obstáculo que tinha por prémio nada mais do que a sua felicidade. A estrada era pois um arco-íris, em cujo extremo repousava o seu tesouro; subir a estrada não era mais uma tarefa ou compromisso, era uma nova vida. O cansaço que sentia só o podia comparar ao gosto esforçado de tratar do quintal da sua avó. Terreno miúdo, entre casas e paredes antigas de pedra gasta, parecia aos olhos de um menino de onze anos, interminável; uma parede forrada a roseiras de Santa Teresinha, aquelas pequeninas e perfumadas que três num quarto bastam para o deixar calmo e acolhedor; o canto das couves, o mais chato de tratar porque envolvia catar