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Da felicidade de ser



Se algum dia fosse obrigado a manter um único pensamento, se, fosse a minha mente restrita, à força de lei, a um só pensamento, impedida, sob pena de cessação de função cerebral superior, de se espraiar pelo Universo que somos e em que nos encontramos, ficaria, de bom grado, pela consciência, ou falta dela, dos actos e das omissões. Imagino-me, para o resto da vida pensante, que pode ou não coincidir com a biológica, para mais ou para menos, absorto nesta linha de pensamento; averiguando a extensão imediata da meditação, procedendo a definições e parametrizações, estipulando regras e metodologias de investigação e análise, lançando teorias, delineando experimentos, avaliando resultados. Numa fase mais adiantada do exercício, anteciparia o intangível, o inesperado desta ou daquela conclusão, regozijaria perante a copa de ramificações do que era primeiramente um tronco e que agora aparece como árvore, frondosa, intrincada, inexpugnável. Torço-me perante os ramais truncados, os ramos incongruentes, as sobreposições e as impossibilidades. Futuro ser possível, com um só pensamento, viver uma vida longa e preenchida; tomo com facilidade a abstracção do mundo e a canalização das energias todas que me restem e que poderei vir a acumular, para este único propósito:

Variará a forma como respondo pelos meus actos em função da consciência que tenho deles? Estando eu ciente de como determinado acto é classificado pela sociedade, posso ou não concordar com essa classificação. Concordando, valerá a avaliação feita pela sociedade também para mim. O que fará dessa avaliação não só a da sociedade, mas também a minha. Posso já aqui, invocar que, pelo facto de partilhar um conceito, não quer dizer que o tenha tomado; é bem possível que, sem conhecimento prévio do que entende a sociedade sobre isto ou aquilo, ou mesmo, por desprezo ao definido pela sociedade, tenha, por processos próprios, chegado a igual definição. Se bem que possa parecer o mesmo, não o é, pois como facilmente se afere, a avaliação dada a uma acção quando lida no mundo e aplicada em função do exemplo, como uma matriz de aplicação, em muito difere da avaliação que é conseguida por meio de esforço intelectual, quem sabe se com algum sacrifício, e que confere ao seu proprietário, chame-se assim, um maior domínio do conceito e uma maior agilidade de aplicação e interpretação. Porém, é perigosa a segunda variante, pois que facilmente conduz a sentimentos de superioridade intelectual e fatalmente, ao afastamento ou mesmo inversão do que se começou por conseguir. Resta apontar que, pelo facto de, após estudar uma acção e sobre ela articular um conceito, coincidente com o da sociedade, não existam garantias que a avaliação seja a correcta. A História é farta em exemplos que me furtarei a enumerar, seja por serem óbvios, seja por serem conhecidos, seja por ter preguiça de o fazer. Se, numa perspectiva histórica, todos os conceitos são eivados de erro, pouco importará então o esforço da observação meticulosa, a dificuldade que implica a abstracção, o terror que é por vezes encarar conclusões que nos repugnam. Com efeito, pesando as hordas dos que, a um lado, consomem conceitos, e os que, do outro, os constroem, vemos que o fiel pende ostensivamente para o lado dos primeiros, podendo isso indicar que o consumo de conceitos funciona, e bem. Porém, se deixasse de haver construtores que por meios próprios, alcançassem conceitos, certos ou errados, a sociedade por certo estagnaria e os conceitos por ela tidos e mantidos poderiam mudar mas apenas por degradação, dificilmente por evolução, nunca por revolução.

Pode também o que decide pensar, ou se vê nessa contingência, chegar a conclusão divergente ou contrária ao conceito que a sociedade mantém. Da mesma forma que se concordasse com o conceito social, o facto de discordar dele, não lhe garante, nem à sociedade, razão ou falta dela. De facto, perante a impossibilidade da aferição da verdade, fica o que constrói, e também todos os outros, num limbo de razão; vencido, o limbo, e numa primeira fase o pensador, apenas pela força dos números ou pela força do poder. O que não é necessariamente mau. De facto, a resistência da sociedade à novidade, ao corte abrupto com o costume, garante-lhe continuidade e ordem. Confere aos seus, sentimentos de pertença e dá-lhes a segurança imprescindível para que possam levar as suas vidas de forma produtiva e profícua. Daí, rejeitarem à partida, todos os conceitos que se lhes afigure como ruptura ou mesmo desvio. Aceitarão apenas, e de forma passiva e reservada, flexões aos conceitos estabelecidos, reinterpretações aparentemente inofensivas, que nada parecem mudar mas que podem ter consequências volumosas. Se bem que certo, também é errado, no sentido em que, no limite, uma sociedade sem pensadores ou sem contestatários, é uma sociedade condenada. Condenada se a olharmos como mais um organismo vivo. Do pouco que sabemos da vida, cedo reconhecemos que a mudança é talvez o seu maior trunfo. Evoluir e adaptar-se continuamente é condição absoluta para a existência. Mas uma sociedade é mais do que um organismo vivo, é também um organismo cultural. E a cultura tem a incongruente característica de, sob determinadas circunstâncias, cristalizar e tender ao eterno. Pensadores e outros actores de mudança são banidos deste tipo de sociedade, e muito bem o são porque actuam como vírus que atacam um organismo são.

Aparentemente, todas as sociedades são capazes de gerar quem as conteste e faça as mudar de rumo, independentemente dos estádios evolutivos em que se encontram e do tratamento que, lançadas as ideias, lhes apliquem. Estes, por seu lado, produzirão tão novos conceitos e tão abruptos, na medida em que a sociedade os acarinha e os liberta, para que, livres do quotidiano, possam alargar o seu pensamento a territórios até então inexplorados.

(continua, qualquer dia)

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