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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2006

Casa

Tirou a chave do bolso do casaco mas logo se arrependeu e tocou à porta. Abriu-a o filho mais novo, o Gabriel. Disse-lhe, Olá Papá!, como nunca o tinha dito, ou pelo menos, ouviu-o, ele, de uma forma como nunca o tinha ouvido, e a sua garganta fechou. Nunca o menino mostrara tanta alegria em ver o pai. E só tinham passado três dias. Pegou nele ao colo, apertou-o, beijou-o na testa, na face, no pescocito e, recomposto o aparelho vocal, perguntou-lhe se estava tudo bem. A resposta foi já dentro do registo diário: Tá! Depois veio à porta o mais velho, o Abel. Demorou um pouco a aparecer, desconfiado, como um gato que foi expulso da cozinha e agora retorna a medo. Disse, Olá Pai., baixinho, e chegou-se a ele, conduzido pelo braço do pai, que o puxava de encontro ao flanco. Com os filhos assim apertadinhos, sentiu-se confortável e não trocaria esse conforto por nada, a não ser, talvez, o pequeno esforço de se baixar para beijar demoradamente a testa do filho mais velho. Ela assomou à porta,

Artista, eu?

Sempre achei, vou ser benevolente, estranha a conversa de artista; pintor, músico, escultor, actor, escritor. Vejo as interpretações que fazem sobre as suas obras, aquele derramar de frases não encadeadas, a fuga para a incompreensão, a abstracção do inefável, e pergunto o querem estes gajos da vida e quem julgam eles que os outros são? Enfim, achava-os uns cocós, tapando, com a cumplicidade dos críticos, o olho ao Zé, em mais do que um sentido. E faziam-no, observe-se o descaramento, sob uma máscara de enrrabichamento, paneleirismo profissional, quiçá verdadeiro, como que a compor o ramalhete e a tornar mais, alternativo, individual e extraordinário, o que, no fim de contas, não passa de um vulgar mortal. Um pouco como dar relevo a uns pequeníssimos olhos castanhos, tapando-os com uns grandes, caros, escuros e enigmáticos óculos de sol. Mas não é que desde que comecei a escrever, encontrei em mim pontos de contacto com essa corja? Razões se me afiguram que mais ninguém entende, caminh

Paulo

O Paulo era, sabia-mo-lo nós e sabia-o, ou não, ele, homossexual. E sabiam-no, dolorosamente, os pais, mas não o admitiam. A mãe até o empurrava para as meninas do grupo de amigos, e dizia às outras mães que seu o filho, na escola, era um D. Juan e não largava as miúdas. O Paulo não as largava mesmo; fazia parte do grupo delas, como uma delas. Partilhava com elas os segredos da idade e os gostos. Lembro-me de o ver abraçado a esta ou àquela amiga e pensar, como pensa quem tem quinze anos, na sorte que o gajo tinha por as miúdas o deixarem andar assim pendurado nelas. Mal sabia que, para elas, o Paulo Mariana (era esse o nome da sua mãe), não procurava nesses abraços o que procurariam o Pedro da Júlia, o Paulo da Helena ou o Tóni Seixas (Seixas porque da mãe dele, não me lembro do nome). Para o pai era tudo muito mais complicado, mas mais simples de resolver; nunca falava do filho. Os nossos pais, que formavam uma pandilha mais ou menos correspondente à pandilha dos filhos (outras seria

O Rei

Olhou para trás e já não via bem o Castelo. Já só via as colunas retorcidas do fumo das fogueiras das vigias, os seus clarões interrompidos pela passagem da guarda, e os vagos recortes da torre, da muralha e de uma ou outra casa fora de portas. Deu as costas ao lar e olhou para cima. Ainda lá estava. Tinha surgido há pouco mais de quatro luas e pareceu mesmo a cereja em cima do bolo que era a cavernosa melancolia que o tinha tolhido e que trazia a corte apoquentada. – Está triste, caminha só pelas veredas. – Julga de forma branda e desinteressada, nem parece o mesmo; austero, justo e firme. – No templo, chora; parece insatisfeito com os Deuses. – As preocupações eram genuínas. Um sentimento de grande desilusão e revolta o apanhara e perdera todo o interesse pela vida. A esposa, também ela devastada, tentava ainda ser mãe e confortava-o como podia. E ele ia atrás e esforçava-se para, de igual modo, a confortar; vê-los era como ver dois bêbados compensando a falta de equilíbrio de um, co

Crime e Castigo

Albert Speer foi ministro do III Reich. Foi ministro do armamento e munições, cargo que exerceu com a mesma dedicação e competência que colocou nos móveis desenhados para Hitler ou no projecto da megalómana nova Berlin. Recorrendo a inovadoras (à época), técnicas de organização industrial, mas também a muito trabalho escravo, Speer alimentou, enquanto pode ser alimentada, a máquina de guerra alemã. Perto do fim do terror nazi, teve a lucidez de não levar adiante as ordens de Hitler no sentido de destruir o que restava das cidades e das fábricas da Alemanha. Em Nuremberga, mostrou-se arrependido e ficou famoso e conhecido como “O nazi que pediu desculpa”. Contrariamente aos seus pares que nunca mostraram remorso pelas atrocidades por eles perpetradas ou pelas do regime que faziam parte, Speer mostrou-se, em Nuremberga, um homem arrependido por ter sido nazi e de não ter feito mais para o combater. Chegou mesmo a confessar, sabe-se lá com que verdade, que planeou assassinar o seu führer,