Há uma praia que visito sempre que posso. É uma praia sempre deserta, com um areal limpo e alisado pela cheia da maré. O ar está sempre fresco, a maresia aviva o espírito e faz o corpo corresponder com saltos pelas pedras que a baixa-mar expõe. Procuro caranguejos por debaixo das pedras, busco camarões, peixes e estrelas-do-mar nas poças límpidas e quietas. Tenho outra vez dez, doze anos, não mais. Tudo é novo e divertido; simples e catastrófico; fascinante e aventuroso. Na falta da trupe, invento tramas diabólicas de aventuras marinhas sem par. Investem devastadoras ondas monumentais, correm torrentes de cheia capazes de aniquilar a civilização tal qual a conhecemos; salvo populações inteiras dum destino atroz. No fim, partem os larotes e os caranguejos sem sequer agradecerem. Ingratos, amanhã brinco aos pescadores de arrasto. Nessa praia só o mar fala. A sua voz ressoa, troa aos ouvidos dos inoportunos que ousam tentar sobrepor a sua voz à da dele. A princípio pode parecer excessiva, difícil de suportar, mas logo o vozeirão cala fundo, tão fundo que se funde com a mente. Sara, suaviza, ecoa, faz-se ecoado que é o mesmo que dizer famoso. Tão famoso na nossa memória, tão formoso aos olhos da alma, que o reconhecemos em qualquer lado, que o reproduzimos na mente sempre que dele necessitarmos. É doce e fresco e enche-nos do seu vazio, da sua amplidão. A água é transparente, a areia é fina de um beije claro, contraste perfeito com o cinzento carregado das pedras e da sua cabeleira de algas em tons de verde ou castanho escuro. Toda a minha vida visitei aquela praia, percorri aquelas pedras, respirei aquele ar. É o meu domínio, conheço-a toda. Toda? Toda não. Um seráfico personagem permanece fora do meu alcance. A meio caminho entre o mar e a duna, está sentado um homem. Sentado parece esperar a morte, como a pedra onde se senta, meia enterrada na areia, espera, dia após dia, que o mar a leve e a triture, conferindo-lhe assim uma nova existência. Nunca falei com ele. Fui crescendo, com aquela praia, dias bons, dias maus, conquistas, perdas, algumas irreparáveis, e nunca falei com ele. Quando era miúdo talvez fosse por medo ou desatenção. À medida que fui crescendo habituei-me a vê-lo ali, confundia-o com as pedras. Hoje dei conta dele, quis falar-lhe como se de um velho conhecido se tratasse, mas cresceu em mim a sensação de que se lá fosse cumprimentá-lo ou perguntar-lhe a hora da viragem da maré, ele iria embora e levaria a praia com ele. Sei que quase sem querer deixei de contar horas ou dias e passei a contar anos. Apercebi-me que ele estava ali há anos, quase tantos como a pedra onde se sentava, e resolvi conquista-lo, antes que o mar o levasse. Disseram-me que se prestasse atenção ao seu olhar, o veria atento às companhas que partiam e regressavam da faina, aos ventos e às marés no seu movimento perpétuo. Como lhes contava as idas e o número de homens. Como calculava o peso da captura e fazia a média de pescado por cabeça; depois, consoante o quociente, abanaria a cabeça em conformidade. Como cheirava o suão e se ralava se os achava atrasados. Como empurrava o barco com o olhar caso a maré por si só não fosse suficiente. Se olhar melhor, disseram-me, vai ver que faz mais do que contar, pesar, ralar e empurrar. Espera, espera sem cansaço, espera sem esperança. Sentei-me no mocho comido pelas navalhas e pelo ar do mar, mandei vir duas taças e sandes de presunto e fiz-me ouvidos a tarde toda. Esta é a história do homem da praia.
um edifício mental construído para manter acesa a chama e reforçar a confusão
Comentários
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