Avançar para o conteúdo principal

O homem da praia (1)

Há uma praia que visito sempre que posso. É uma praia sempre deserta, com um areal limpo e alisado pela cheia da maré. O ar está sempre fresco, a maresia aviva o espírito e faz o corpo corresponder com saltos pelas pedras que a baixa-mar expõe. Procuro caranguejos por debaixo das pedras, busco camarões, peixes e estrelas-do-mar nas poças límpidas e quietas. Tenho outra vez dez, doze anos, não mais. Tudo é novo e divertido; simples e catastrófico; fascinante e aventuroso. Na falta da trupe, invento tramas diabólicas de aventuras marinhas sem par. Investem devastadoras ondas monumentais, correm torrentes de cheia capazes de aniquilar a civilização tal qual a conhecemos; salvo populações inteiras dum destino atroz. No fim, partem os larotes e os caranguejos sem sequer agradecerem. Ingratos, amanhã brinco aos pescadores de arrasto. Nessa praia só o mar fala. A sua voz ressoa, troa aos ouvidos dos inoportunos que ousam tentar sobrepor a sua voz à da dele. A princípio pode parecer excessiva, difícil de suportar, mas logo o vozeirão cala fundo, tão fundo que se funde com a mente. Sara, suaviza, ecoa, faz-se ecoado que é o mesmo que dizer famoso. Tão famoso na nossa memória, tão formoso aos olhos da alma, que o reconhecemos em qualquer lado, que o reproduzimos na mente sempre que dele necessitarmos. É doce e fresco e enche-nos do seu vazio, da sua amplidão. A água é transparente, a areia é fina de um beije claro, contraste perfeito com o cinzento carregado das pedras e da sua cabeleira de algas em tons de verde ou castanho escuro. Toda a minha vida visitei aquela praia, percorri aquelas pedras, respirei aquele ar. É o meu domínio, conheço-a toda. Toda? Toda não. Um seráfico personagem permanece fora do meu alcance. A meio caminho entre o mar e a duna, está sentado um homem. Sentado parece esperar a morte, como a pedra onde se senta, meia enterrada na areia, espera, dia após dia, que o mar a leve e a triture, conferindo-lhe assim uma nova existência. Nunca falei com ele. Fui crescendo, com aquela praia, dias bons, dias maus, conquistas, perdas, algumas irreparáveis, e nunca falei com ele. Quando era miúdo talvez fosse por medo ou desatenção. À medida que fui crescendo habituei-me a vê-lo ali, confundia-o com as pedras. Hoje dei conta dele, quis falar-lhe como se de um velho conhecido se tratasse, mas cresceu em mim a sensação de que se lá fosse cumprimentá-lo ou perguntar-lhe a hora da viragem da maré, ele iria embora e levaria a praia com ele. Sei que quase sem querer deixei de contar horas ou dias e passei a contar anos. Apercebi-me que ele estava ali há anos, quase tantos como a pedra onde se sentava, e resolvi conquista-lo, antes que o mar o levasse. Disseram-me que se prestasse atenção ao seu olhar, o veria atento às companhas que partiam e regressavam da faina, aos ventos e às marés no seu movimento perpétuo. Como lhes contava as idas e o número de homens. Como calculava o peso da captura e fazia a média de pescado por cabeça; depois, consoante o quociente, abanaria a cabeça em conformidade. Como cheirava o suão e se ralava se os achava atrasados. Como empurrava o barco com o olhar caso a maré por si só não fosse suficiente. Se olhar melhor, disseram-me, vai ver que faz mais do que contar, pesar, ralar e empurrar. Espera, espera sem cansaço, espera sem esperança. Sentei-me no mocho comido pelas navalhas e pelo ar do mar, mandei vir duas taças e sandes de presunto e fiz-me ouvidos a tarde toda. Esta é a história do homem da praia.

Comentários

Ana Ribeiro disse…
Parabéns!
Está aqui um edifício mental com bons alicerces.


Visita-te em
www.manualcontracronometro.blogspot.com.
Menina Marota disse…
Já o li, com calma vou lendo o resto...

;)

Mensagens populares deste blogue

Lançamento de livro Manual do Suicida

É com o sentimento que reflecte a foto que agradeço a todos quantos estivam comigo. Até à próxima. p az.

Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido

Mesmo não sendo principes, vale muito a pena ler e concluir pela nossa cabeça. Só pela nossa cabeça. MAQUIAVEL, Nicolau. Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido In: O príncipe. (trad. Olívia Bauduh) São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores). Excerto d'O Príncipe (Cap. XVII) de Nicolau Maquiavel Continuando na apresentação das qualidades mencionadas, digo que cada príncipe deve preferir ser reputado piedoso e não cruel; a despeito disso, deve cuidar de empregar adequadamente essa piedade. César Bórgia , embora tido como cruel, conseguiu, com sua crueldade, reerguer a Romanha, unificá-la e guiá-la à paz e à fé. O que, bem analisado, demonstrará que ele foi mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à fama de cruel, permitiu a destruição de Pistóia. Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel para manter unidos e com fé os seus súbditos, pois, com algumas excepções, é ele mais piedoso do que aqueles que, por clemência em dem

Infecção 1

Sempre fui um vampiro. Durante mais de 10 000 anos existi numa não vida, como um não ser. Era perfeito, era equilibrado, era belo na certeza das coisas eternas. Eras passaram por mim sem que desse conta ou sentisse sequer cansaço ou fastio. Renovaram-se, evoluíram, homens e demais bichos, moveram-se montanhas, secaram e encheram-se rios. Tudo perante mim surgia, por mim passava e por fim desaparecia. No ininterrupto ciclo da existência só eu permanecia. Sem ser um Deus, era mais do que um homem; tendo sido um homem, cumpri a aspiração destes, libertando-me das grilhetas do efémero. Já me tinha esquecido de como era sentir a vida; já se apagara o pulsar do sangue nas veias, da fome, do calor ou do frio, do chão duro sob os pés; já tinha abandonado o desejo de possuir; já tinha entregue a paixão de ser; já tinha perdido a memória dos filhos que vi nascer e criei. Era uno com o mundo, embora ele me temesse e amaldiçoasse. Não queria o mal dos homens, amava-os na condição de alimento, na c