— “Hoje não vou à escola, mãe?”
— “Não, filho. O teu pai ligou e diz que anda uma revolução na rua.”
— “Revolução, mãe?”
— “Revolução, filho.”
Fiquei logo a gostar do 25 de Abril.
Estava uma dia lindo, soalheiro, pouco dado a abris de águas mis. Passou devagar, com o pai a telefonar para casa dizendo que tudo estava bem, para a mãe ver a televisão e ouvir a rádio. [Abro aqui um parêntesis, recto, para esclarecer algo que acho odioso e que precisa ser mudado por quem pode; só pode dizer-se ‘ouvir a rádio.’, pois ‘ouvir o rádio’ é prestar atenção ao que um electrodoméstico diz; já ‘ouvir a rádio’ é escutar o que as diferentes emissoras nos fazem chegar via ondas hertzianas; senhores do mundo, orientai vossos esforços para a resolução deste pungente problema linguístico]. Soube também pelo meu pai que o povo apoiou o golpe (sim, foi a golpe; que mesmo podre não caiu) logo que as primeiras notícias circularam e se concentraram viaturas blindadas em redor do quartel general na Praça da República. Lá em casa, aborrecia-me e queria sair. A mãe não deixava e avisei-a que não me obrigasse a vir para a rua gritar. Ciente do que se passava, sabendo do resultado da opressão, fez o que faria qualquer ditador reformista; deixou-me ir para a rua mas à sua vista, ali em frente à varanda do prédio. A ela juntaram-se outras reformistas e cá em baixo, outros tantos esperançados. Oh curta primavera! Que nos roubaram a liberdade recém adquirida. Ao sinal, já não sei donde, que a sede da PIDE, na Rua do Heroísmo, estava cercada e que os esbirros, com tudo a perder, estavam dispostos a dar luta, as reformistas deram o sacramental duplo passo à retaguarda e impuseram o recolher obrigatório. Houve até, não vi mas contaram-mo, que certa mãe escondeu os rebentos debaixo da cama, não fosse uma bomba estrelar o estratégico bairro do Monte da Bela, berço, fruto da revolução ou da reprodução ou das duas, de estrelas do futebol de Riad e do futsal do SLB.
Olhava o televisor embalado pela música clássica, hipnotizado pela legenda que dizia, mais ou menos, esperem um bocadinho que quando soubermos para que lado isto cai dizemos qualquer coisa. Volta e meia lá vinha um comunicado. O movimento das forças armadas… — “Ó mãe! Tá dare!” Como era pequeno, não me lembro se as imagens que vi de soldados e floristas, de homens barbudos com colarinhos de aviador e mulheres vestindo casacos a três quartos justos na cinta por grossos cintos e botas de cano alto, passaram naquela Quinta-Feira ou nos dias seguintes. Lembro-me de gritavam “Liberdade, liberdade”. Mas eu era livre! Livre de pensar e até de agir. Ok, castigaram-me quando fugi com o Adão e o Zé-Tó da carrinha da escola, para vir do Monte Aventino até à escola a pé. Mas tudo bem, a aventura de tresmalhar o último rebanho da cidade do Porto, aos seis anos de idade, valeu bem as réguadas dadas sempre a custo pelo professor Nelson. Não sabia que havia quem nos controlava, que nos podava as asas, pena a pena, de modo a quase não notarmos que deixamos de poder voar. A pouco e pouco me foram dizendo que agora podia dizer-se o que se queria, que o sr. Alfredo estava numa cadeira de rodas porque a PIDE lá o pôs. Que não se podiam juntar mais de três pessoas na rua e que o Manuel Joaquim foi apanhado com um jornal chamado Avante na mão e foi preso. Que o filho de uma vizinha foi para França porque não queria ir para a guerra. “Guerra? Mas nós estamos em guerra, sr. Fernando?” Tinha uma tatuagem no braço que dizia Guiné. Tinha horrores tatuados na cabeça e passava-os à família. O primo Manuel veio de Angola e ficou fechado no quarto durante um mês. O meu pai chegou a casa e abraçou-nos a todos; a mim, ao Cocas, à mãe e ao menino que nasceria em liberdade.
Este povo, assim unido, dificilmente seria vencido, ainda que acossado por dificuldades, dúvidas, ceifas. Cresceu o povo, transformou-se a união. É latente, tipo uma reserva moral para dias difíceis. Persiste a liberdade, a de ser, a de querer, a de olhar para tudo que nos querem impor com os olhos desconfiados de um puto de seis anos. Porque ainda há quem nos pode. Pode-mo-los nós a eles, podemos o nosso futuro para sermos mais e nunca menos; mais cidadãos, mais irmãos, mais humanos.
— “Não, filho. O teu pai ligou e diz que anda uma revolução na rua.”
— “Revolução, mãe?”
— “Revolução, filho.”
Fiquei logo a gostar do 25 de Abril.
Estava uma dia lindo, soalheiro, pouco dado a abris de águas mis. Passou devagar, com o pai a telefonar para casa dizendo que tudo estava bem, para a mãe ver a televisão e ouvir a rádio. [Abro aqui um parêntesis, recto, para esclarecer algo que acho odioso e que precisa ser mudado por quem pode; só pode dizer-se ‘ouvir a rádio.’, pois ‘ouvir o rádio’ é prestar atenção ao que um electrodoméstico diz; já ‘ouvir a rádio’ é escutar o que as diferentes emissoras nos fazem chegar via ondas hertzianas; senhores do mundo, orientai vossos esforços para a resolução deste pungente problema linguístico]. Soube também pelo meu pai que o povo apoiou o golpe (sim, foi a golpe; que mesmo podre não caiu) logo que as primeiras notícias circularam e se concentraram viaturas blindadas em redor do quartel general na Praça da República. Lá em casa, aborrecia-me e queria sair. A mãe não deixava e avisei-a que não me obrigasse a vir para a rua gritar. Ciente do que se passava, sabendo do resultado da opressão, fez o que faria qualquer ditador reformista; deixou-me ir para a rua mas à sua vista, ali em frente à varanda do prédio. A ela juntaram-se outras reformistas e cá em baixo, outros tantos esperançados. Oh curta primavera! Que nos roubaram a liberdade recém adquirida. Ao sinal, já não sei donde, que a sede da PIDE, na Rua do Heroísmo, estava cercada e que os esbirros, com tudo a perder, estavam dispostos a dar luta, as reformistas deram o sacramental duplo passo à retaguarda e impuseram o recolher obrigatório. Houve até, não vi mas contaram-mo, que certa mãe escondeu os rebentos debaixo da cama, não fosse uma bomba estrelar o estratégico bairro do Monte da Bela, berço, fruto da revolução ou da reprodução ou das duas, de estrelas do futebol de Riad e do futsal do SLB.
Olhava o televisor embalado pela música clássica, hipnotizado pela legenda que dizia, mais ou menos, esperem um bocadinho que quando soubermos para que lado isto cai dizemos qualquer coisa. Volta e meia lá vinha um comunicado. O movimento das forças armadas… — “Ó mãe! Tá dare!” Como era pequeno, não me lembro se as imagens que vi de soldados e floristas, de homens barbudos com colarinhos de aviador e mulheres vestindo casacos a três quartos justos na cinta por grossos cintos e botas de cano alto, passaram naquela Quinta-Feira ou nos dias seguintes. Lembro-me de gritavam “Liberdade, liberdade”. Mas eu era livre! Livre de pensar e até de agir. Ok, castigaram-me quando fugi com o Adão e o Zé-Tó da carrinha da escola, para vir do Monte Aventino até à escola a pé. Mas tudo bem, a aventura de tresmalhar o último rebanho da cidade do Porto, aos seis anos de idade, valeu bem as réguadas dadas sempre a custo pelo professor Nelson. Não sabia que havia quem nos controlava, que nos podava as asas, pena a pena, de modo a quase não notarmos que deixamos de poder voar. A pouco e pouco me foram dizendo que agora podia dizer-se o que se queria, que o sr. Alfredo estava numa cadeira de rodas porque a PIDE lá o pôs. Que não se podiam juntar mais de três pessoas na rua e que o Manuel Joaquim foi apanhado com um jornal chamado Avante na mão e foi preso. Que o filho de uma vizinha foi para França porque não queria ir para a guerra. “Guerra? Mas nós estamos em guerra, sr. Fernando?” Tinha uma tatuagem no braço que dizia Guiné. Tinha horrores tatuados na cabeça e passava-os à família. O primo Manuel veio de Angola e ficou fechado no quarto durante um mês. O meu pai chegou a casa e abraçou-nos a todos; a mim, ao Cocas, à mãe e ao menino que nasceria em liberdade.
Este povo, assim unido, dificilmente seria vencido, ainda que acossado por dificuldades, dúvidas, ceifas. Cresceu o povo, transformou-se a união. É latente, tipo uma reserva moral para dias difíceis. Persiste a liberdade, a de ser, a de querer, a de olhar para tudo que nos querem impor com os olhos desconfiados de um puto de seis anos. Porque ainda há quem nos pode. Pode-mo-los nós a eles, podemos o nosso futuro para sermos mais e nunca menos; mais cidadãos, mais irmãos, mais humanos.
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