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Maio

Passava ontem na rua e vi um velho Ford Taunus, daqueles que revolucionaram o mundo automóvel ao saírem equipados com quatro velocidades para a frente e uma marcha-atrás. Vi o velho Ford, dizia, com um frondoso ramo de maias entalado em cada um dos pára-choques. Olhei em volta e nada. Tudo como nos outros dias. Se alguém tinha plantas à janela, era porque as ali tinha em Abril e as terá, salvo de secarem, em Junho. Vasos de florinhas viçosas mas sem memória, floreiras cheias de sardinheiras cheirosas mas sem glória, trepadeiras que lentamente procuram asfixiar as casas, no seu abraço paulatino e desconcertante. Maias, nem vê-las. Só as colocadas no velho Taunus, pertencente, digo eu, a um homem tão anacrónico como a viatura que teima em manter, mantinham viva a tradição da noite do Carrapato!

Pena ter-se, como tantas outras, perdido a tradição de proteger a casa com os raminhos de giesta florida. As ruas, por muito urbanas que fossem, por muito que por lá passassem carros e gente apressada, ganhavam um ar campestre, bucólico. Parecia até que cheirava melhor e o amarelo que sarapintava tudo, dava o mote para que a alegria da Primavera penetrasse os corações. Pena foi perder-se esse gesto simples de um tempo tão antigo que se escoou da memória.

Contava-me a avó Mila que memória não lhe faltava, que na noite de 30 de Abril para um de Maio, não podia o cristão deixar porta ou janela ou postigo ou gateira ou frincha sem o seu raminho de maia, não fosse o Belzebu esgueirar-se pelo buraco e tentar, à desgraça, os sofredores de Cristo. Por maioria de razão, a defesa contra o Cão, estendia-se aos haveres móveis como animais, alfaias, pomares, hortas e também automóveis e tudo mais que pertença tivesse e onde se lhe pudesse espetar, enfiar, coser, calçar ou trilhar um raminho de maia.

Quando lhe perguntava porque faziam isto as pessoas e porquê nesta altura do ano, respondia-me que por ter nascido em Dezembro, o menino Jesus teria meio anito e Heródes, Rei demoníaco soubera já da natureza divina e real do Salvador. Temendo a perda do seu poder, Heródes manda matar o menino. — Mas como, Majestade! Se há tantas crianças na cidade? Como mostrar que casa devem os soldados romanos entrar e chacinar? — Assim perguntavam os sacerdotes, também eles ansiosos pelo sangue de Jesus. Respondeu-lhes Heródes, homem perverso, que um judeu, caído em desgraça, se prontificou para assinalar a casa de José e Maria com um ramo de giesta, um ramo de maia, sendo este o sinal para o infame esquadrão. Informada a guarnição romana de que aquela casa seria covil de ladrões de villas romanas e de violadores de matronas, era imperioso que lá entrassem e matassem a todos, sem olhar a sexo ou idade. Só assim ficariam com a certeza de expurgar a vilania do lugar. Foi de igual modo combinado o sinal que marcaria o destino dos que lá moravam. Ao saber do arranjo, descansou Heródes a sua alma escura nos prazeres mundanos e pecaminosos a que se entregava sem vergonha nem remorso.

— Mas avó! O menino Jesus não morreu, pois não? — Não, não morreria senão dali a muitos anos e por vontade própria, para glória e Deus e salvação do mundo. O que aconteceu foi que alguém ouviu a conversa. Talvez, um escravo dos romanos. — E que fez? Que fez? — Calma; logo que pode, foi a correr até à aldeia e contou a triste maquinação aos aldeãos, foi rua por rua, casa por casa. O povo tremeu mas não caiu. Como não podiam enfrentar os soldados, equipados e sanguinários, armaram-se da sagacidade e colocaram o sinal delatório em todas as portas, em todas as janelas, em todos os buracos das suas casas. Os romanos, cobertos pela alta madrugada, entraram na aldeia com o dente afiado mas deram com todas as casas da aldeia sinalizadas. Confusos e sem vontade para empreenderem a destruição de uma aldeia inteira, demandaram ao quartel. Com este ardil, José e Maria puderam abandonar a Palestina e fugir para o Egipto, levando consigo Jesus e mantendo viva a promessa de salvação da humanidade. — E Heródes? Que fez ele? — Fez uma coisa terrível, meu filho. Mas essa, é outra história.

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