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Infecção 1

Sempre fui um vampiro. Durante mais de 10 000 anos existi numa não vida, como um não ser. Era perfeito, era equilibrado, era belo na certeza das coisas eternas. Eras passaram por mim sem que desse conta ou sentisse sequer cansaço ou fastio. Renovaram-se, evoluíram, homens e demais bichos, moveram-se montanhas, secaram e encheram-se rios. Tudo perante mim surgia, por mim passava e por fim desaparecia. No ininterrupto ciclo da existência só eu permanecia. Sem ser um Deus, era mais do que um homem; tendo sido um homem, cumpri a aspiração destes, libertando-me das grilhetas do efémero. Já me tinha esquecido de como era sentir a vida; já se apagara o pulsar do sangue nas veias, da fome, do calor ou do frio, do chão duro sob os pés; já tinha abandonado o desejo de possuir; já tinha entregue a paixão de ser; já tinha perdido a memória dos filhos que vi nascer e criei. Era uno com o mundo, embora ele me temesse e amaldiçoasse. Não queria o mal dos homens, amava-os na condição de alimento, na certeza que sem a sua essência a minha se apagaria, contrariando, algo paradoxalmente, a minha eternidade. Sentia por eles o amor que sente a erva pelo sol, ou a zebra pela erva, ou o leão pela zebra; um amor apenas superado pelo amor próprio, e tão censurável como qualquer outro amor. Mas era o sangue, o sangue que me elevou à classe dos deuses, que desejo nos homens. E isso assutava-os, deixava-os à beira de um ataque de nervos. Confundia-os, sentirem-se um elo na cadeia alimentar, nada poderem fazer, senão encomendar-se ao criador, no momento em que lhes flectia ternamente o pescoço e lhes cravava os dentes, furando-lhes a pele quente, drenando-lhes a vida em ritmos acelerados de corações moribundos. Demónio! diziam os homenzinhos. Coitados! dizia eu ao vê-los achando-se somente efémeros receptáculos da minha perenidade.

Se bem que longe das fraquezas humanas, estava longe de ser totalmente imune. Tinha diariamente um mais ou menos longo período de vulnerabilidade, altura em que os mais afoitos de entre o rebanho humano, não entendendo o seu lugar no ciclo vital e a pouca mossa que lhes causava nos números, tentavam pôr cobro ao que é eterno; fosse por meio de estacas cravadas no coração, fosse por balas de prata, fosse por, temor maior, exposição forçada aos raios solares. Como sou imune a fenómenos climáticos e viajo grandes distâncias sem esforço, montei dois quartéis generais longe dos habitates mais formigantes dos humanos e sobretudo longe daquelas cidades onde o bem-estar criou uma casta de homens com tempo para pensar na eternidade e que se julgam senhores do seu destino. O de inverno na Groenlândia e o de inverno, mas do sul, numas esquecidas ilhas na orla do mar antárctico. Seguro de ataques à falsa fé, tão característicos dos homens, mas longe deles, o contacto que com eles mantinha resumia~se ao estrito já és meu! ou, já és minha! e por aí ficava. Volta e meia lá levava alguém comigo para um dos refúgios para dele, ou dela, procurar entender como estavam a evoluir, que feitos haviam alcançado, em que ponto estava a sua tenacidade e vitalidade enquanto espécie. Em resumo, avaliava o calibre da caça. Lamentavelmente duravam pouco. O frio, o temor constante de serem abocanhados e a extrema solidão quebrava-os. Adoecendo, rapidamente definhavam e morriam. Experimentei levar um pequeno grupo para que se fizessem companhia e se confortassem mutuamente. Mas foi uma grande asneira, pois que juntos multiplicaram as forças e ardil. Tramaram enquanto dormia e tentaram matar-me. Tive de os chacinar a todos, sem excepção. E de forma tão brutal o fiz que deles nada aproveitei, nem gota. Olhando para trás, e poucas vezes o faço, compreendo que tomei uma atitude insensata e inútil; insensata porque desperdicei alimento e neguei dignidade à morte de vários seres humanos, pelos quais tenho desmedido respeito e afecto; inútil porque o castigo não cumpriu a sua função disciplinadora, matei-os a todos, nem de alerta ao resto da horde humana, ninguém soube.

Durante o inverno europeu, e se a temporada austral me foi de feição, reforçando minhas reservas energéticas, aventurava-me pelos países do sul, não pelo ameno clima ou pela qualidade da alimentação, que pouco vaira, mas por algo me fascinava, no pouco que havia de surpresa na minha existência, e que apenas sentia em Portugal – o romper do dia. Lá, no fim da madrugada, há minutos mágicos que valem bem milhares de quilómetros e risco de aniquilação. Aqueles momentos em que o sol se anuncia sem se manifestar são instantes de eternidade. Os pássaros voam e chilreiam incessantemente, a atmosfera é trespassada de frescura, os sistemas de rega automática silvam e lançam à brisa calma névoas que esvanecem delicadamente. O nevoeiro pousa aqui e ali, ora escondendo, ora mostrando as casas, as ruas. Até os objectos mais banais como uma papeleira de aço inox ganha, por estar coberta de orvalho, um estatuto de obra de arte, de objecto único. Sendo quem era, conseguia ver o abraço de morfeu envolvendo prédios inteiros, ruas inteiras; as persianas corridas; as luzes apagadas, as das casas e as das ruas, por razões de eficiência energética ou de incúria autárquica. O carros são raros e não fazem moça. Por muito populosas que sejam, as ruas estão calmas e entregues ao silêncio. O bater de asas de uma pomba soa como um trovão, o chamar de uma rola, como uma longínqua buzina de nevoeiro, o matutino varrer de uma escadaria de um prédio, como o despejar de um camião de brita. Os poucos que passam, passam ensonados a alheios. Até me cumprimentam, indiferentes à dupla benção em que estão envoltos, usufruir deste momento e sair dele com vida. Saciado, retribuo a saudação de forma comedida, procurando sempre esconder os dentes. Os poucos que passam parecem não perceber o tamanho da graça que os envolve; seja porque as razões que os fazem saltar da cama à hora que me deito sejam demasiado prosaicas para delas se abstraírem e contemplarem o momento, seja porque o sacrifício de acordar ainda está presente no corpo, seja por ser este cenário quotidiano e, inexplicavelmente digo eu, banal.

Foi num desses momentos, mágico para mim, em que algo de humano em mim se reacendia e me baixava a guarda que a vi passar e a luz do seu olhar me infectou!

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