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1. O suicídio por hemorragia

Notas prévias e importantes (volto a lembrar):
Este texto é um exercício de criatividade. Não pretende, nem poderá, retratar situações reais.
Este texto não existe fora da cabeça de quem o escreveu e esvanece no momento em que quem o lê termina cada palavra.

NÃO ACONSELHO NINGUÉM AO SUICÍDIO. Na minha opinião, é sempre melhor VIVER. Não procuro com este texto – ou outros –, levar, conduzir, apoiar ou encorajar o suicídio de quem quer que seja.
Se te queres matar, não deixes na carta que fui eu quem to aconselhou. Procura ajuda. VIVE!

[Hemorragia – do Lat. haemorrhagia < Gr. haimorrhagia, (s. f.), é o derramamento do sangue para fora dos vasos sanguíneos.]

Pousou a caneta, sem a tapar; pegou na folha e dobrou-a em três, cuidadosamente; meteu-a no envelope, sem pressas; humedeceu a boca demoradamente e lambeu a aba do envelope, devagar, para lá e para cá. Ficou-lhe na língua o gosto a cola de farinha, e soube-lhe a ela. Lembrou-se dela como se fosse esta a ultima vez que lhe tocava, nela, toda ela, nos carnudos lábios, no pequeno peito, no liso ventre, na recôndita… Não quis pensar mais nela. Aliás, isto era por ela, por causa dela, em função dela, para que ela ficasse a saber. Não se deixa assim uma pessoa, com o pensamento nela, com a força nela, com a vida por ela. Pousou o envelope e escreveu o nome dela, em letras redondas, trabalhadas, alinhadas. Pousou novamente a caneta já tapada e levantou-se.

Ainda foi à janela, espreitar a rua. Mas o espaço onde ela costumava estacionar o carro continuava deserto. Como queria que o carro ali estivesse; como queria encostar o ouvido à porta para lhe adivinhar os passos ansiosos subindo as escadas; como queria abrir a porta e vê-la ofegante, com o peito em delicioso sobressalto; como queria beija-la e ir, disfarçadamente, a título de qualquer coisa juvenil e sem importância, até ao estúdio e rasgar a carta em bocadinhos. Mas não. O carro não estava lá, os passos nunca soaram, o peito não rompia do decote, a carta ficaria. Chega de esperar!

Entrou na casa de banho. Tinha a banheira pronta, a água quente e as pétalas de rosas e de malmequeres a flutuar. O odor a flores era intenso, o ambiente abafado. Estava tudo como gostava; os turcos pendurados, vergados e alisados pelo peso da humidade, pendiam fofos e felpudos; dos azulejos escorriam espessas gotas de água pelo vapor que neles condensava; também dos espelhos, o maquilhador e o grande, completamente embaciados, corriam reguinhos de condensação, aqui e ali, formando um padrão riscado que lhe entrevia a quase nudez. Toda a casa de banho estava cheia de uma opacidade quente que desfocava os contornos, atenuava os gestos e aveludava as caricias. Tivesse havido, algum dia, um qualquer espectador e teria assistido ao inolvidável: aquela casa de banho foi o universo. Dois corpos unidos, húmidos, entre tocando-se, por entre o vapor, fontes de vapor, emanando calor, exalando amor. Pegou na navalha de barbear que tinha sido do pai e que lhe foi parar às mãos por este não ter tido filhos homens. A navalha tinha um cabo de osso de cachalote com incrustações de madre-pérola. Era antiga mas parecia nova, a estrear. Sempre a usou com extrema competência para rapar os pêlos das pernas e das axilas. Aprendeu a usa-la ainda em vida do pai, por ser ela quem lhe fazia a barba quando ao velhote já tremia a mão cansada. Aprendeu a amola-la e a maneja-la com a mestria de um barbeiro. Competência que se revelou crucial por ser uma rapariga moderna, rica e audaz, nos audazes anos vinte, inteligentemente liberta das castráveis opiniões da sociedade, bela e frágil de tal forma que todos a amavam. Embora liberta e independente, e se calhar, por isso, observava um rigoroso código de conduta de moda e de higiene. Vestia-se como uma deusa sem asas. Os chapéus de abas redondas, os colares longos, as luvas enormes, os sapatos altos e as saias curtas. As cores, as flores, os perfumes. Não andava, pairava. Não sorria, iluminava. Passava a vida a banhar-se e depilava-se regular e exaustivamente. Removia todos os pêlos do corpo, há excepção do cabelo, das pestanas e das sobrancelhas. Chocante! Encontrava sempre grande prazer em depilar-se demoradamente, nua na banheira, com a água a ferver-lhe o corpo e a incendiar-lhe a alma; o sabonete a escorregar pela barriga das pernas, depois pelas coxas, virilhas e mais além. Então devagar, muito devagar, a lâmina lambia a pele, ao de leve, fazendo um ruidinho surdo – rrrrrrrrr –, rasgando caminhos de suavidade, de brilho, sempre subindo, até ao desejo consumado. Quando ela apareceu, o ritual passou a ser a dois, a duas. Deixou de ser algo meramente higiénico ou uma obrigação de moda. Deixou de ser uma consumação de prazer onanista, o que em si não é pouco, pois o prazer infligido ao próprio é o primeiro e o mais próximo da perfeição, para passar a ser uma dádiva, um comprovativo de conhecimento profundo da outra, uma entrega total, sem condições, à outra que segurava a navalha. Hoje, a navalha iria fazer um trabalho diferente, mais cirúrgico e mais definitivo.

Tirou o roupão e pendurou-o no cabide da porta. Olhou-se demoradamente ao espelho: era bela; uma flor branca e suave. O seu reflexo era quase indestrinçável do resto da casa de banho. A condensação no espelho, a atmosfera enevoada, transformava-lhe o corpo de alabastro num véu diáfano. A sua alma, via uma mortalha que importava dar uso. Entrou para a banheira, sentou-se e recostou-se, apoiando a cabeça na toalha que, dobrada, estava pousava do bordo até à linha da água. Com o pé, abriu um pouco mais a torneira da água quente. Sentiu o calor subir pelas pernas e chegar a todo o corpo. Levou as mãos em concha à cara e sentiu-se feliz. Porém, não o suficiente, pegou na navalha, abriu-a, e segurando-a com a mão esquerda, mirava o pulso direito. Sabia que tinha de fazer um golpe transversal na parte interna do pulso. Largo o suficiente para cortar as duas artérias da mão, a radial e a ulnar. Sabia que o deveria fazer com o pulso dentro de água, para que o sangue não esguichasse, aspergindo o chão ou as paredes. Queria uma cena perfeita, apenas um pequeno oceano maculado no que fora um universo de intimidade e perfeição. A mensagem seria clara: só ela. Tudo o resto ficaria intocado. Um memorial a um amor que, no seu auge, foi eterno. Cortou o pulso direito, sem medo nem indecisão. Estranhamente não doeu. Antes mesmo que o sangue turvasse a água, passou a navalha para a mão direita e cortou o pulso esquerdo. Fechou a navalha e pousou-a no ventre. Estendeu os braços e ficou a contemplar as golfadas de sangue, impetuosas, misturando-se com a água quente. Deixou de ver as mãos, logo a navalha pousada no ventre e as coxas desapareceram por entre a névoa vermelha. Depois, perdeu de vista as pernas, os pés, tudo. Até as pétalas se perdiam no carmim. Já pouco via. Sentia o corpo pesado e invadia-a uma grande sonolência. Queria fazer o filme da sua vida mas não conseguia. Todas as lembranças remetiam para o último capítulo, para ela. De como a conheceu, fugitiva de um aguaceiro primaveril em Central Park. O vestido colado ao corpo rendia a sua privacidade. O ar de pintainho de lábios carmim incendiou-a de imediato. Ofereceu-lhe o guarda chuva, o carro, a casa, a si. Tentou abrir os olhos, mas eles já não eram os seus. Olhava agora muito para lá daquele mar vermelho. Encostou a cabeça na toalha, deixou afundar os braços, entregou as pernas à gravidade e mergulhou num sono profundo.

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