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Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido

Mesmo não sendo principes, vale muito a pena ler e concluir pela nossa cabeça. Só pela nossa cabeça.

MAQUIAVEL, Nicolau. Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido
In: O príncipe. (trad. Olívia Bauduh)
São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores).



Excerto d'O Príncipe (Cap. XVII) de Nicolau Maquiavel

Continuando na apresentação das qualidades mencionadas, digo que cada príncipe deve preferir ser reputado piedoso e não cruel; a despeito disso, deve cuidar de empregar adequadamente essa piedade. César Bórgia , embora tido como cruel, conseguiu, com sua crueldade, reerguer a Romanha, unificá-la e guiá-la à paz e à fé. O que, bem analisado, demonstrará que ele foi mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à fama de cruel, permitiu a destruição de Pistóia. Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel para manter unidos e com fé os seus súbditos, pois, com algumas excepções, é ele mais piedoso do que aqueles que, por clemência em demasia, permitem o surgimento de desordens, das quais podem originar-se assassínios ou rapinagem. Tais consequências são nocivas ao povo inteiro, e as execuções que vêm do príncipe ofendem somente um indivíduo. E, dentre todos os príncipes, são os novos os que menos podem evitar a fama de cruéis, uma vez que os Estados novos estão cheios de perigo. Diz Virgílio, pela boca de Dido : Res dura, et regni novitas me talia cogunt/Moliri, et late fines custode tueri.
Desse modo, o príncipe não deve ser crédulo nem precipitado, nem atemorizar-se, e sim proceder com equilíbrio, prudência e humanidade, para que o excesso de confiança não o torne incauto, nem a desconfiança excessiva o faça intolerável.

Origina-se aí a questão aqui discutida: se é preferível ser amado ou temido. Responder-se-á que se preferiria uma e outra coisa; porém, como é difícil unir, a um só tempo, as qualidades que promovem aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido do que amado, quando se veja obrigado a falhar numa das duas. os homens costumam ser ingratos, volúveis, dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro; enquanto lhes proporcionas benefícios, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, como se disse antes, desde que a necessidade dessas coisas esteja bem distante. Todavia, quando ela se aproxima, voltam-se para outra parte. Quanto ao príncipe, caso se tenha fiado integralmente em palavras e não haja tomado outras precauções, está arruinado. Porque, quando se fazem amizades por interesse, não por grandeza ou nobreza de carácter, são compradas, e não se podem contar com elas nos momentos de maior precisão. E os homens relutam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer, pois o amor se mantém por um vínculo de obrigação, o qual, mercê da perfídia humana, rompe-se sempre que lhes aprouver, enquanto o medo que se incute é alimentado pelo temor do castigo, sentimento que nunca se abandona. Assim, deve o príncipe tonar-se temido, de sorte que, se não for amado, ao menos evite o ódio, pois é fácil ser, a um só tempo, temido e não odiado, o que ocorrerá uma vez que se prive da posse dos bens e das mulheres dos cidadãos e dos súbditos, e, mesmo quando forçado a derramar o sangue de alguém, poderá fazê-lo apenas se houver justificativa apropriada e causa manifesta. Deve, em especial, impedir-se de aproveitar os bens alheios, uma vez que os homens se esquecem mais rapidamente da morte do pai do que da perda do património. Ademais, nunca faltam ocasiões para pilhar o que a outros pertence, e quem começa vivendo de rapinagens sempre as encontra, o que já não acontece quanto às oportunidades de derramar sangue.

Quando, porém, está o príncipe em campanha e tem sob seu comando um grande número de soldados, então é absolutamente preciso não se incomodar com a fama de cruel, pois, sem ela, jamais se terá como manter unido um exército, disposto a qualquer acção. Entre as admiráveis acções de Aníbal, há esta: contava com um exército numeroso, formado por homens de todas as idades e nacionalidades, e combatia em terras alheias; e ainda assim nunca apareceu disputa alguma em seu seio, nem aquilo que diz respeito ao príncipe, tanto nos tempos bons como nos adversos. Não se pode atribuir tal fato senão à sua desumana crueldade, que, em meio a infinitas virtudes, o fez sempre adorado e terrível aos olhos de seus soldados. Essas virtudes, sozinhas, não seriam suficientes para promover tal efeito, não fora a desumana crueldade. E, entre cronistas pouco comedidos, alguns se satisfazem com admirar e louvar essa qualidade, enquanto outros reputam a ela todos os triunfos que ele conseguiu. E para demonstrar que, sozinhas, as outras virtudes não bastariam, veja-se o exemplo de Cipião , homem excepcional, não somente em sua época como também na memória dos fatos que a história registra, cujos exércitos se rebelaram quando na Espanha; e isso se explica por sua bondade excessiva, por meio da qual ele concedeu mais liberdade, às tropas, do que seria conveniente à disciplina militar. Por esse motivo, foi severamente admoestado, no Senado, por Fábio Máximo, que o acusou de corruptor da milícia romana. Os locrenses, barbaramente abatidos por um legado de Cipião, não foram vingados pelo chefe romano, nem foi a insolência de tal legado castigada, fatos decorrentes do carácter bondoso de Cipião. E, desejando alguém desculpá-lo no Senado, disse haver muitos homens que sabiam antes não errar do que corrigir os erros alheios. Essa particularidade de carácter teria, no decorrer dos anos, destruído a reputação e a glória de Cipião, caso tivesse ele permanecido no comando; vivendo, contudo, sob a direcção do Senado, essa qualidade prejudicial não foi apenas anulada como se tornou benéfica.

Concluo, portanto (voltando ao assunto sobre se é melhor ser temido ou amado), que um príncipe sábio, amando os homens como desejam eles ser amados, e sendo temido pelos homens como deseja ser temido, deve ter como base aquilo que é seu, não dos outros. Enfim, deve somente procurar evitar ser odiado, como ficou dito.

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