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Carta a um padre

Padre,

Não me conhece mas eu conheço-o a si, de o ver e ouvir aqui e ali e de ler um pouco do muito que tem produzido. Se o encontrasse na rua talvez o interpelasse para o cumprimentar, como se faz a uma vedeta e depois contar a outros a pequena vitória. Talvez parecesse assim, mas não o seria seguramente. Se o encontrasse e cumprimentasse, seria para lhe partilhar uma grande dor. A dor de um homem que acredita na mensagem de Cristo mas que não consegue aceitar a doutrina da Igreja. Tenho dois filhos, a pequena de poucos meses e o maior de poucos anos. Ele diz-me que não gosta da catequese, que não acredita em Deus. E eu que lhe digo? O que me foi dito, que Deus é o meu maior amigo, e já está? Que o baptizei para lhe expurgar o pecado original? O que queria mesmo dizer-lhe, é que Deus é indiferente aos destinos dos homens, que é omnipresente mas não omnipotente, que está para lá do universo. Ou então, queria dizer-lhe "Deus sive natura" e saber explicar-lho convenientemente. Expliquei-lhe que ele e a irmã são a obra maior de um amor que dura há mais de 20 anos e que a sua concepção foi, antes de tudo, um acto de dedicação e entrega.

Tenho de conseguir explicar tudo isto ao meu filho, mas primeiro a mim. Cresci a acreditar e a participar activamente nos ritos. Fui catequista e catequizado até aos 18 anos. Um dia parei. Descobri que a macieira era afinal a árvore do conhecimento. Provei e fiquei nu.

Se o encontrasse confiava-lhe estas e outras dúvidas. Ter-lhe-ia perguntado: Tem tempo? Almoçamos? É que é à mesa que melhor se conversa. E comeríamos, e falaríamos e eu procuraria paz para a dor que me rasga e não me deixa crescer, e o padre procuraria também, pois é esse o destino dos homens que não se rendem, e talvez, talvez encontrássemos algo que nos fizesse crescer.


um abraço. p az.

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