Avançar para o conteúdo principal

Levantar

Gosto de me levantar cedo. Antes mesmo do Sol. Não gosto de ter de empurrar o lençol e sentir o fresco do ar do quarto. Gostaria de acordar já levantado, lavado e vestido. Alucinações, já falei disso, eu sei. Só que detesto ter de aprumar o corpo contrariado para fora da cama. Só a chibata de algum compromisso ou a cenoura de um dia belo lá fora me impelem a saltar da cama. Geralmente preciso de várias tentativas e de alguma motivação radiofónica para me levantar. Não faço nada sem comer bem. Comer bem é, para mim e pela manhã, tomar chá com uma nuvem de leite, comer pão com mel ou com queijo. Segue-se um café pausado, a pausa antes de tudo. Sentado no velho cadeirão de couro olhando o vazio, ou de pé, olhando a rua através do janelão da varanda. Em pé, vou controlando o progresso do Sol, se titubeia ou se vai firme no seu curso. Serve-me esta primeira pausa para pensar o dia e o que nele tenho e posso fazer. Serve também como rastilho para a primeira surpresa do dia.

Já na rua, surpreendo-me sempre por ter trazido demasiada roupa. Em casa é diferente. Face ao conforto que ela, a casa, me dá, ao aconchego com que me protege, a rua, vista da casa, é fria e intimidadora. Tenho ganas de levar comigo o aconchego, manter-me na mãe-casa, tê-la envolta em mim. Ai mãe, porque me puseste no mundo, frio, com correntes de ar, perigos, filhos para cuidar e assegurar. Quem me dera mãe, ficar sempre na tua casa, quentinho em ti, segurinho. Dormindo. Sair requer por isso uma grande dose de estimativa, prevenção e antecipação. Quando chove de encontro aos vidros está tudo bem, não há lugar a dúvidas. Quando está escuro e borrasqueiro também se apanha bem o timbre ao dia. Mas quando o Sol parecer reinar sobre a orbe, ferindo de luz os contornos suaves dos carros, as paredes claras das casas, já o caso muda de figura. A cabeça corrobora os sinais do que é, ou será, um dia fogoso e passa à frente da camisola ficando-se pela t-shirt, ignora o casaco grosso atalhando para o colete, relega as botas e pega nas sapatilhas. Mas o corpo, o corpo quente, o corpo protegido, não vai na onda e diz à mente, emancipada mas crédula em tudo que diz respeito ao corpo, diz, mesmo sem ter olhos nem capacidade analítica, que há ali orvalho que já devia ter sumido, que passa além o moço a esfregar as mãos, que se bioca a velha fugindo de nada que se veja. Logo o cérebro também vê. Vê o esbracejar subtil das árvores, dizendo com os ramos, é o frio, é o frio. Vê a porção embaciada do janelão lembrando a noite gélida. Vê não vendo o ar cristalino, revelador do fresco que ainda paira. E deixa-se levar, a palerma. Corro tonto com medo de perder o conforto e ter o corpo zangado. Sorte minha ser preguiçoso e obrigar o corpo à preguiça. Não pego nas botas, marimbo-me para a camisola… só não resisto e, pego no casaco, deixando o colete, atirado, no velho cadeirão.

Chegado à rua, sinto o fresco na cara e lembro-me de Aquilino. Avanço passeio fora e logo o sacana do corpo começa a dar mostras de arrependimento. Fica quente e desconfortável. Resmunga pela gola em sopros quentes. Queixam-se os braços do abafamento que lhes é imposto. Resmunga a mente porque é quem leva com tudo. Fico quilhado por me sentir como o pai de dois filhos desavindos que não sabe a qual dar razão. Tiro o casaco. Um braço reclama e passa a carga para o outro. Reclama o outro braço. Quietos meninos! Não obriguem a ir aí. Sigo caminho com o casaco ao ombro. Vai bem assim, a proteger as costas, que é quem mais precisa de protecção. Poderei ser avô, velho mesmo e as costas ansiarão sempre pelo peito da mãe, pelo braço do pai. Imagino-me como um novelo que há medida que cresce, que vai levando a sua vida, se vai desenrolando e ficando mais pequeno. O fio que deixo pode ser longo, pode vir a ter quilómetros, poderá perder-se de vista, mas sei que se precisar pegar nele e seguir o caminho inverso, vou encontrar a ponta, as costas, nas mãos do meu pai e da minha mãe. Nunca me perco, e raramente sei para onde vou. Basta saber que vim de algum lado, do pai e da mãe.

Comentários

Anónimo disse…
Um texto lindíssimo, Pedro. Parabéns!
Abraço
Marta

Mensagens populares deste blogue

Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido

Mesmo não sendo principes, vale muito a pena ler e concluir pela nossa cabeça. Só pela nossa cabeça. MAQUIAVEL, Nicolau. Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido In: O príncipe. (trad. Olívia Bauduh) São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores). Excerto d'O Príncipe (Cap. XVII) de Nicolau Maquiavel Continuando na apresentação das qualidades mencionadas, digo que cada príncipe deve preferir ser reputado piedoso e não cruel; a despeito disso, deve cuidar de empregar adequadamente essa piedade. César Bórgia , embora tido como cruel, conseguiu, com sua crueldade, reerguer a Romanha, unificá-la e guiá-la à paz e à fé. O que, bem analisado, demonstrará que ele foi mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à fama de cruel, permitiu a destruição de Pistóia. Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel para manter unidos e com fé os seus súbditos, pois, com algumas excepções, é ele mais piedoso do que aqueles que, por clemência em dem

Lançamento de livro Manual do Suicida

É com o sentimento que reflecte a foto que agradeço a todos quantos estivam comigo. Até à próxima. p az.

Infecção 1

Sempre fui um vampiro. Durante mais de 10 000 anos existi numa não vida, como um não ser. Era perfeito, era equilibrado, era belo na certeza das coisas eternas. Eras passaram por mim sem que desse conta ou sentisse sequer cansaço ou fastio. Renovaram-se, evoluíram, homens e demais bichos, moveram-se montanhas, secaram e encheram-se rios. Tudo perante mim surgia, por mim passava e por fim desaparecia. No ininterrupto ciclo da existência só eu permanecia. Sem ser um Deus, era mais do que um homem; tendo sido um homem, cumpri a aspiração destes, libertando-me das grilhetas do efémero. Já me tinha esquecido de como era sentir a vida; já se apagara o pulsar do sangue nas veias, da fome, do calor ou do frio, do chão duro sob os pés; já tinha abandonado o desejo de possuir; já tinha entregue a paixão de ser; já tinha perdido a memória dos filhos que vi nascer e criei. Era uno com o mundo, embora ele me temesse e amaldiçoasse. Não queria o mal dos homens, amava-os na condição de alimento, na c