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Asas

Observavam-nos a bater as asas num frémito desengonçado; ela, ainda na penugem, dava com elas no ar e pouco mais; mesmo assim, a força e a tenacidade postas na brincadeira, deixavam entrever uma lutadora; mais à borda, o mais velho ensaiava batimentos que produziam resultados; elevava-se uns centímetros acima do ninho mas logo fechava as asas ao sentir a falta dos gravetos e penas debaixo das garras que, por ora, ainda se podiam considerar fofas; quer um quer outro demonstravam segurança e potencial impensáveis à apenas uma geração; felizmente comuns nesta que se quer de um novo paradigma de conhecimento e de um muito velho paradigma de amor; a mãe voltou-se para fora do ninho e, com um suave impulso, mergulhou no abismo de pedra; ganhou velocidade e abriu as asas, fez uma curva para a esquerda e começou a subir, a subir, a subir; os três olhavam a mãe, lá em cima, num voo meigo e plácido, de bem com os ventos e com as correntes; era tão certa como o nascer do sol, segura e diligente, a mais bela das aves; perdida de vista, regressam às suas actividades; o pai observava os pintos enquanto despedaçava um bicho; retalhado o pobre e como quem não quer a coisa, abria as asas muito abertas, voltando-se contra a brisa que cortava o estio; esperava o momento em que o filho o observasse e mergulhava para logo tornear e ficar, por ali, a pairar, com um olho no céu e outro nos pintos; a pequena não ligava nenhum, ou assim dava a entender, atirava-se à comida como se estivesse para acabar o mundo; o que podia ser verdadeiro, dado o panorama lúgubre do ecossistema que os abrigava; brincava com pauzinhos, ossículos e penas, arrumando-os de um lado para o outro do ninho, para no fim deixar tudo espalhado; já o pinto olhava de lado e fazia como queria, batia as asas, alçava e recolhia; o pai dava mais uma volta e levantava às alturas; em baixo, achando que o pai não olhava, fazia primeiro à sua maneira e depois como viu fazer e comparava os métodos; sentia-se frustado por não conseguir dar devido uso às asas e tornava-se trapalhão; o pai pousava e bicava-o ao de leve para que ganhasse juízo; amuou e ficou quieto até a mãe chegar com uma perdiz; a pequena bicava o irmão, muito maior, no que poderia ser considerado um desafiar da morte; no entanto reinava a paz e o máximo que podia dali sair eram umas bicaditas de amor seguidas de arrufos e chilreios; pousa a mãe, roça ao de leve com o bico no bico do pai; antes de se abeirar, atira-lhe um olhar de renovada surpresa face à beleza que sempre lhe encontra e mergulha no abismo de pedra.

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