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A estrada (3)

Curioso como o cansaço não é sempre igual. Vencidos os primeiros dez minutos da subida, penosos e estafantes, tão difíceis de ultrapassar que o fez pensar em desistir, via-se agora num outro nível de esforço físico. A estrada prolongava-se, aparentemente interminável, um evereste de terra batida. Assim era, aos olhos de um maratonista da segunda circular, aquele obstáculo que tinha por prémio nada mais do que a sua felicidade. A estrada era pois um arco-íris, em cujo extremo repousava o seu tesouro; subir a estrada não era mais uma tarefa ou compromisso, era uma nova vida. O cansaço que sentia só o podia comparar ao gosto esforçado de tratar do quintal da sua avó. Terreno miúdo, entre casas e paredes antigas de pedra gasta, parecia aos olhos de um menino de onze anos, interminável; uma parede forrada a roseiras de Santa Teresinha, aquelas pequeninas e perfumadas que três num quarto bastam para o deixar calmo e acolhedor; o canto das couves, o mais chato de tratar porque envolvia catar caracóis e lesmas que se perfilavam pelos caules e debaixo de cada folha rugosa; a sebe das framboesas, arbusto com toques de rapariga de dezasseis anos que se julga melhor do aquilo que é, difícil de tratar porque ramo que deu fruto não repete o gesto tendo por isso de ser cortado para haver continuidade no frutificar, no saber onde e quando cortar reside a arte de tratar das framboesas, e como tarde aprendemos, é arte inútil com as raparigas de dezasseis anos; ladeando o rego da água, uma mata desordenada de jarros, para as moradas dos defuntos, insistia em avivar-lhe a rinite, assumiam comportamento de praga e a avó mandava-o, todos os anos, arrancar à sachola uma boa parte dos pés; a palmeira que crescia lentamente e que era preciso preservar das trepadeiras; e o talhão dos morangos que tanto trabalhinho dava, ele era revolver a terra para que os pezinhos pegassem bem, era cavar os reguinhos de modo que a água corresse de uma ponta à outra do talhão só com a mangueira a deixada a correr, era cobrir com plástico para que a geada não queimasse os rebentos e, quando pintavam os primeiros frutos, havia que pendurar estacas com sacos plásticos bamboleantes para afugentar a pardalada. As tarefas eram entregues de forma a preencherem uma jorna; embora analfabeta, a avó foi a melhor gestora de projecto que conheceu, mesmo na gestão da insubordinação laboral, mostrando-se inflexível perante a pose teimosa e o olhar desalentado do menino ao contemplar aquele campo todo que precisava de ser catado, sachado, podado e regado. Há hora do lanche, após um dia duro e um banho, o menino olhava o quintal do cimo das escadas e antecipava o sabor dos morangos e as mãos tingidas pelas framboesas; recorda ainda a competição tola que a avó mantinha com o tio Domingos pela couve mais alta; estava a seu cargo arrancar, na altura própria, as folhas que nasciam, obrigando a couve a fugir à devastação, crescendo, dizendo em língua de couve, vou para onde não me apanhas; mas apanhava-a sempre, primeiro em bicos de pés, depois em cima do banco da cozinha e mais tarde no escadote do padrinho, ia arrancando as folhas e amparando a planta com velhos paus de vassoura e demais varas. Já não recorda qual dos dois ganhou a compita, lembra-se apenas de ter a seu cargo uma couve de dois metros de altura, anã pelos padrões do Entroncamento, mas colossal quando se tem um metro e quarenta de onze anos.

(continua)

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