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Trindade

Como pode algo que é uno ser, ao mesmo tempo, trino? Como pode algo, simultaneamente, ser Eu, ser Tu, ser Nós? O pensamento lógico/matemático impede-nos de pensar para além do Eu que sou Eu, do Tu que és Tu, do Nós que somos dois, que embora próximos, em comunhão, vivemos existências distintas. O que nos poderá, não digo provar, mas antes, fazer perceber para lá do óbvio, do declarado pelos que, não sendo niilistas, em pouco ou nada acreditam, fazer perceber sem recorrer a explicações metafísicas, que para além de gastas e sempre sujeitas a amplíssimas interpretações, mais atrapalham do que confortam, o que poderá, digo, fazer-nos dizer que aqui está algo que não vejo, que ninguém viu, que nunca ninguém mostrará aos demais, mas que sei que existe em igualdade com a matéria e que com ela se relaciona, influencia, modifica e é modificado. Por não se tratar de razão, de objectividade, tão pouco ter aparente repercussão física, não abundam exemplos ou mesmo pistas, sequer ares. Explicar razoavelmente a Santíssima Trindade ou mesmo (e ainda melhor), a relação entre o Homem e o Divino, nunca sendo tarefa descabida, tem sido subalternizada perante a razão da fé, dos seus saltos e do conforto que dá. A fé, por ser um compromisso que se aceita tal qual, comporta riscos elevados; rejeita-la comportará riscos ainda maiores. Aqueles que a têm, privam-se da dúvida que o pensamento suscita; aqueles que duvidam, ostracizam a fé que certamente têm (porque ninguém É sem Ser). Se por um lado, a fé leva à recusa e ao confronto com a razão, o confronto leva ao medo e o medo sacia-se na fé criando assim um ciclo de intolerância do qual encontramos na nossa história (a ocidental) e na actualidade (a do médio oriente), amplos exemplos; por outro lado, no seu oposto, uma razão despida de fé torna-se autocrática e intolerante, especializando-se e perdendo contacto com a realidade, reagindo com o que considera retrógrado e errado, com violência, ou pior, com indiferença.

Noto que estou a descentrar-me da dúvida que hoje me coloco, pelo que voltarei à cepa. Dizia difícil explicar a essência múltipla do que é um sem recurso à fé, talvez por ser verdadeiramente difícil, ou verdadeiramente impossível, ou ainda por ser burro, um sapateiro que procura olhar além da chinela. Mas como de sapateiros depende o mundo para andar, porque não também estes olharem para a perna e já agora, para o resto do corpo e para o que vai para lá dele. Retirar a fé de tais conceitos é, acho eu, tarefa perdida à partida, desvelo sem razão, na medida em que o cientista, deve acreditar que há coisas que desconhece, fenómenos que não sabe explicar, conceitos que lhe escaparão permanentemente, mistérios que perdurarão. Explica-los exclusivamente pela fé, na recusa da lógica, resulta uma manta tão rota que se torna intocável, sob pena de se desintegrar. Deve então o pensador ser mais do que um cientista ou político, mais do que um místico ou religioso, deve, devo, encontrar formas indirectas de ao menos entrever a multiplicidade no que é único, ainda que o silogismo que me ampara, envenene a conclusão que produz.

Uma metáfora a que podemos recorrer é o sentimento que mais nos anima e que, de uma ou de outra forma, todos experimentamos; o amor, na sua forma correspondida, só para ser mais fácil, compreende um amado, um amador e um, digamos, fruto que é o próprio amor. Rapidamente constatamos que o amador é simultaneamente o amado e o amado é também o amador. Eles existem, estão vivos e interagem com o mundo; mas não será também o seu amor real e autónomo? As suas manifestações são bem visíveis e falam por si, tão visível é que terceiros muitas vezes o reconhecem antes mesmo de amado e amador o reconhecerem. Aliás, o reconhecimento de determinado amor não é condição necessária para que ele exista; pode inclusive ser negado e a sua negação não faz com que ele não exista ou desapareça. Passando do fruto aos seres, perguntemos; existirá o amado se não houver um amador? Poderemos conceber verdadeiramente um amador que não seja amado? O amador é o amado e o amado, amador; o amador e o amado são, no seu conjunto nada menos que o amor entre eles mas mais do que só o seu amor. Eis como dois são três, como Eu sou simultaneamente Tu e Nós. Como o amor é o amado mas nele não se esgota, como o amador ama o amado e ama, também, o seu amor.

E agora é que as coisas se tornam perigosas; entender a relação do Homem com o Divino como uma Trindade de amor seria um corolário magnífico para a nossa temerosa (lê como quiseres) existência. Pensarmo-nos o Eu ou o Tu da Trindade é tentador e facilmente arregimentaria longas filas de seguidores, como de resto, tem feito. Mas não poderia ser mais falso. A trindade existe, liga-se pelo amor, o Divino é amado e amador, mas o outro amado/amador não é o Homem mas a vida! Seja ela a que for, esteja ela onde estiver. A única fonte de contentamento para nós, seres humanos, será (aqui o silogismo é imediato), o facto de fazermos parte da vida, porquanto seres vivos. O facto de sermos inteligentes, obreiros, aparentemente intemporais, em nada contribui para um estatuto superior ou de favorecimento, antes pelo contrário, obriga a uma responsabilidade ilimitada por toda a vida que nos rodeia e sustenta. Contentemo-nos em ser o que somos, um elo na cadeia da vida, privilegiados não por estar mais próximo do Divino, mas apenas porque nos apercebermos dele.

Percebeste? Ainda bem; caso contrário não faz mal, de qualquer maneira, basta amar.

Comentários

Anónimo disse…
No seu texto refere-se o caro autor a niilistas que seguem o niilismo ontológico; o niilismo crítico ou o niilismo ético que por sua vez são adeptos do movimento russo oitocentista, chamada niilismo político ou se preferir anarquismo?

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