Avançar para o conteúdo principal

A estrada (1)

Estava um dia quente, muito quente. O sol estendeu um manto grosso que sufocava gente e bichos, uma camisa acabada de passar que nunca arrefecia e fazia transpirar, um calorífico desregulado que, em Março, alguém se esqueceu de desligar. O céu, azul de ponta a ponta, deixava entrar a luz a rodos; as casas e as coisas, saturadas de luz, repeliam a que a sua pigmentação não conseguia, ou não queria, segurar, empurrando-a para os olhos, aos magotes, saturando a glândula pineal, trocando as voltas ao cérebro. Como dois é companhia e três é multidão, calor e luz mandaram a aragem dar uma volta, e se ela, de onde a onde, se mostrava, não era como rival enciumada a querer arrefecer a relação, mas antes como casamenteira, a aconchegar, a sussurrar aos presentes, animados e inanimados, a solidez daquela união.

Subia o músico a calçada. As pedras mal assentes, indiferentes à sola fina dos vitorinos, torturavam-lhe os pés com finíssimas pontadas; apertados os pés e apertado o músico por os ter confinados nuns sapatos desenhados por um qualquer Josef Mengele da moda, queixavam-se os primeiros a cada passo dado enviando estímulos nervosos com cada vez maior acutilância. Subia e repetia o que dizer quando finalmente tivesse que o dizer; quanto mais subia, mais o cansaço se sobrepunha ao que repetia, e dava consigo a balbuciar e a trocar a ordem às falas e a inverter as imaginadas deixas. Parecia que caminhava há horas, estava desgrenhado e o suor transparecia pela camisa fraldiqueira. Mas ainda há pouco, ao sair do carro, aperaltado, vestiu o casaco do fato, confortável, e apertou os botões; comprou-o de propósito, queria estar o seu melhor, que nada corresse mal. Tirou-o mal havia dado dez passos; aos trinta, desafogou o nó da gravata e desapertou o primeiro botão da camisa; aos cinquenta, e sem parar, passou o casaco do ombro para o braço e começou a arregaçar as mangas à camisa; aos cem passos, já mal se lembrava que depois de deixar o carro no largo da vila, em frente ao café, lhe tinham dito que a quinta que procurava era já ali, depois daquela estrada, e que podia ir a pé, que apreciaria a beleza da vila e dos campos circundantes. Estranha concepção do tempo e espaço a desta gente; para ele, já ali era uma distância equiparável àquela entre a porta do elevador e o lugar de garagem, e nunca, reforce-se, nunca a subir.

(continua)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Lançamento de livro Manual do Suicida

É com o sentimento que reflecte a foto que agradeço a todos quantos estivam comigo. Até à próxima. p az.

Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido

Mesmo não sendo principes, vale muito a pena ler e concluir pela nossa cabeça. Só pela nossa cabeça. MAQUIAVEL, Nicolau. Da crueldade e da piedade — se é melhor ser amado ou temido In: O príncipe. (trad. Olívia Bauduh) São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores). Excerto d'O Príncipe (Cap. XVII) de Nicolau Maquiavel Continuando na apresentação das qualidades mencionadas, digo que cada príncipe deve preferir ser reputado piedoso e não cruel; a despeito disso, deve cuidar de empregar adequadamente essa piedade. César Bórgia , embora tido como cruel, conseguiu, com sua crueldade, reerguer a Romanha, unificá-la e guiá-la à paz e à fé. O que, bem analisado, demonstrará que ele foi mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à fama de cruel, permitiu a destruição de Pistóia. Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel para manter unidos e com fé os seus súbditos, pois, com algumas excepções, é ele mais piedoso do que aqueles que, por clemência em dem

Infecção 1

Sempre fui um vampiro. Durante mais de 10 000 anos existi numa não vida, como um não ser. Era perfeito, era equilibrado, era belo na certeza das coisas eternas. Eras passaram por mim sem que desse conta ou sentisse sequer cansaço ou fastio. Renovaram-se, evoluíram, homens e demais bichos, moveram-se montanhas, secaram e encheram-se rios. Tudo perante mim surgia, por mim passava e por fim desaparecia. No ininterrupto ciclo da existência só eu permanecia. Sem ser um Deus, era mais do que um homem; tendo sido um homem, cumpri a aspiração destes, libertando-me das grilhetas do efémero. Já me tinha esquecido de como era sentir a vida; já se apagara o pulsar do sangue nas veias, da fome, do calor ou do frio, do chão duro sob os pés; já tinha abandonado o desejo de possuir; já tinha entregue a paixão de ser; já tinha perdido a memória dos filhos que vi nascer e criei. Era uno com o mundo, embora ele me temesse e amaldiçoasse. Não queria o mal dos homens, amava-os na condição de alimento, na c