Estava um dia quente, muito quente. O sol estendeu um manto grosso que sufocava gente e bichos, uma camisa acabada de passar que nunca arrefecia e fazia transpirar, um calorífico desregulado que, em Março, alguém se esqueceu de desligar. O céu, azul de ponta a ponta, deixava entrar a luz a rodos; as casas e as coisas, saturadas de luz, repeliam a que a sua pigmentação não conseguia, ou não queria, segurar, empurrando-a para os olhos, aos magotes, saturando a glândula pineal, trocando as voltas ao cérebro. Como dois é companhia e três é multidão, calor e luz mandaram a aragem dar uma volta, e se ela, de onde a onde, se mostrava, não era como rival enciumada a querer arrefecer a relação, mas antes como casamenteira, a aconchegar, a sussurrar aos presentes, animados e inanimados, a solidez daquela união.
Subia o músico a calçada. As pedras mal assentes, indiferentes à sola fina dos vitorinos, torturavam-lhe os pés com finíssimas pontadas; apertados os pés e apertado o músico por os ter confinados nuns sapatos desenhados por um qualquer Josef Mengele da moda, queixavam-se os primeiros a cada passo dado enviando estímulos nervosos com cada vez maior acutilância. Subia e repetia o que dizer quando finalmente tivesse que o dizer; quanto mais subia, mais o cansaço se sobrepunha ao que repetia, e dava consigo a balbuciar e a trocar a ordem às falas e a inverter as imaginadas deixas. Parecia que caminhava há horas, estava desgrenhado e o suor transparecia pela camisa fraldiqueira. Mas ainda há pouco, ao sair do carro, aperaltado, vestiu o casaco do fato, confortável, e apertou os botões; comprou-o de propósito, queria estar o seu melhor, que nada corresse mal. Tirou-o mal havia dado dez passos; aos trinta, desafogou o nó da gravata e desapertou o primeiro botão da camisa; aos cinquenta, e sem parar, passou o casaco do ombro para o braço e começou a arregaçar as mangas à camisa; aos cem passos, já mal se lembrava que depois de deixar o carro no largo da vila, em frente ao café, lhe tinham dito que a quinta que procurava era já ali, depois daquela estrada, e que podia ir a pé, que apreciaria a beleza da vila e dos campos circundantes. Estranha concepção do tempo e espaço a desta gente; para ele, já ali era uma distância equiparável àquela entre a porta do elevador e o lugar de garagem, e nunca, reforce-se, nunca a subir.
(continua)
Subia o músico a calçada. As pedras mal assentes, indiferentes à sola fina dos vitorinos, torturavam-lhe os pés com finíssimas pontadas; apertados os pés e apertado o músico por os ter confinados nuns sapatos desenhados por um qualquer Josef Mengele da moda, queixavam-se os primeiros a cada passo dado enviando estímulos nervosos com cada vez maior acutilância. Subia e repetia o que dizer quando finalmente tivesse que o dizer; quanto mais subia, mais o cansaço se sobrepunha ao que repetia, e dava consigo a balbuciar e a trocar a ordem às falas e a inverter as imaginadas deixas. Parecia que caminhava há horas, estava desgrenhado e o suor transparecia pela camisa fraldiqueira. Mas ainda há pouco, ao sair do carro, aperaltado, vestiu o casaco do fato, confortável, e apertou os botões; comprou-o de propósito, queria estar o seu melhor, que nada corresse mal. Tirou-o mal havia dado dez passos; aos trinta, desafogou o nó da gravata e desapertou o primeiro botão da camisa; aos cinquenta, e sem parar, passou o casaco do ombro para o braço e começou a arregaçar as mangas à camisa; aos cem passos, já mal se lembrava que depois de deixar o carro no largo da vila, em frente ao café, lhe tinham dito que a quinta que procurava era já ali, depois daquela estrada, e que podia ir a pé, que apreciaria a beleza da vila e dos campos circundantes. Estranha concepção do tempo e espaço a desta gente; para ele, já ali era uma distância equiparável àquela entre a porta do elevador e o lugar de garagem, e nunca, reforce-se, nunca a subir.
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