Avançar para o conteúdo principal

O homem da praia (8 e último)

O Adélia Maria esfumou-se e com ele terminou para o homem da praia a faina maior. Até voltava, mas o declínio da indústria, os stocks exauridos, a concorrência de frotas melhor apetrechadas, condenaram a frota portuguesa de bacalhau a um lento mas seguro esquecimento. Ficam as memórias dos que por lá passaram, enquanto por cá andarem e fica o Museu marítimo de Ílhavo. Edifício que pela sua arquitectura apenas merece demorada visita; por ser a memória da faina maior, merece o nosso carinho e apoio. Levemos lá os filhos, os avós, para que se entendam, para que não se quebre a linha do ser português, daquele que, como disse o padre António Vieira, tem um palmo de terra para nascer e o mundo inteiro para morrer.
Capitaneava um arrastão ao largo da Mauritânia. A passagem para as águas quentes e para os dias fogosos, trouxe-lhe alívio às penas que começava a sentir, fossem as da idade, fossem as medalhas pelos momentos difíceis por que passou. Superou as muitas diferenças que o tipo pesca apresenta, redes eram redes, fossem de cerco ou de arrasto, peixe era peixe, fossem fanecas ou bacalhaus ou agora, linguados, chernes, espadims e solhas, e que mais haja, pois o mar era rico e deixado em pousio já que o povo de lá, ao contrário do nosso, voltou-lhe as costas, preferindo navegar as dunas, votados à imutável Meca. Achou mais estranho capitanear, mandar ao invés de fazer; coordenar era simples, sempre o tinha feito, mas dizer, faz isto, faz aquilo, sem justificar pelo exemplo, soava sempre estranho e distante do que se achava. No entanto estava estranhamente só. Era um mestre respeitado; conheciam a sua história e as suas histórias, sabiam bem a têmpera do homem que ali estava, o olhar de mar que trazia. A ordem rolava pelo barco como uma onda de maré, empurrando todos para a sua observância, não havia desmandos, nem dúvidas. Após um breve período a queimar gasóleo (gasól), o arrastão atestava as arcas e todos estavam felizes.
De regresso a casa, netos ao colo, contava histórias de diabos marinhos maiores que automóveis, de peixes mais velozes que o vento, de ventos quentes que levantavam as dunas da praia. Eram histórias de dias brilhantes e de noites cintilantes. Dizia que aquele mar não se importava se era dia ou noite, brilhava sempre, ora lhe dava o sol e dele fazia cobalto, ora lhe caia a noite e a lua o pavimentava de estrelas. Na roda da proa, mão na amura, outra segurando o cigarro, ouvia o mar; conversavam, confessavam-se.

Onde está este filho do mar? Que aconteceu para estar sentado na pedra, esperando que o mar os leve, triture e dê nova existência? Apanhou uma doença, não sei, qualquer coisa vertiginosa; se olhar para o lado, ou se mexer mais depressa, tem tonturas, perde o equilíbrio e cai. Bem disfarçou, foi aguentando, sentava-se na cabina e de lá vociferava toda a amargura que o ia comendo. Um dia caiu, mesmo ao meu lado. Hospital, médicos, e já sabe; chegado aos médicos, fica-se mesmo doente. Proíbiram-no de embarcar e logo morreu. Está ali que ninguém o anima.
Cumprimentei os presentes e despedi-me. Parecia estar a sair de um velório; na tasca muda, nem os copos batiam, nem o rádio tocava. Com um medo terrível de ser desiludido, oh egoísmo, sentei-me ao lado do homem da praia, na areia.
– Olá Pedro.
– Sabe o meu nome?
– É claro que sei. Conheço-te desde pequeno. Tu gostas da praia, mas não do mar. Estive, ano após ano, à espera que viesses falar comigo. Sou assim tão mau?
– Não mestre, não é. Veja bem: achava que se viesse falar consigo, você levantava-se e, sem dizer nada, levava a praia embora. Mestre, porque dizem os homens que morreu? É por não poder pescar?
– És ingénuo Pedro, ou então contaram-te mal a história. Gosto da pesca, mas tanto se me dá. O que me dava a vida era o mar e as histórias que ele me contava. Falava com o mar como tu falas contigo próprio. Imagina agora que deixavas de falar contigo. Sentes a dor, a solidão? É por isso que aqui estou, para que ele não se esqueça de mim; porque sou um cobarde, sabes? O meu maior desejo é juntar-me ao mar, abraça-lo e ser abraçado, mas não consigo. Apenas espero que ele me leve.

Comentários

Menina Marota disse…
Confesso que não li o conto na totalidade.

Gosto de ler com calma.

Mas li pelo menos o nº. 1... e, pelo caminho atrevi-me a "roubar-te" um poema... porque a mim Também me Apeteceu...

Algum inconveniente diz, que será de imediato apagado...

Um abraço ;)

Mensagens populares deste blogue

Comentário ao livro: 'Um Discurso Sobre as Ciências', de Boaventura Sousa Santos

Este e outros títulos disponíveis em: www.lulu.com NOTA IMPORTANTE: Tenho reparado nas visitas assíduas que este post recebe. Notem por favor que o comentário é pessoal e interpretativo, isto é, esta versão tem, para além da análise ao texto, considerações de minha lavra, deixando por isso de respeitar o espírito do autor. Agrada-me bastante que leiam o post e o refiram, mas por favor, ressalvem a sua natureza pessoal e possivelmente arredia do rigor e sapiência com que nos brinda Sousa Santos. Se mesmo assim for importante à vossa pesquisa, há um e-book disponível para download em: www.lulu.com/zigurate . p az. Resumo Reflexão sobre o pensamento e método científicos. Aborda o pensamento vigente, identifica pontos de ruptura e aponta uma nova forma de encarar a ciência e fundamentalmente, uma nova perspectiva da dualidade ciência natural / ciência social. Comentário Este texto procura mostrar ao leitor a evolução do pensamento científico desde a sua primeira revolução, ...

Saudade

Se há palavras portuguesas, saudade é seguramente uma delas. Para A Enciclopédia, edição do Público, obra planeada e realizada pelos Serviços do Departamento de Enciclopédias e Dicionários da Editorial Verbo, Saudade é nf Lembrança, suave e triste ao mesmo tempo, de um bem do qual se está privado; pesar, mágoa que nos causa a ausência de pessoa querida; nostalgia; pl (fam.) cumprimentos, lembranças afectuosas a pessoas ausentes. O dicionário da Porto Editora, na sua 7ª Edição de 1994, define Saudade como s. f. melancolia causada por um bem de que se está privado; mágoa que se sente por ausência ou desaparecimento de pessoas, coisas, estados ou acções; pesar; nostalgia; pl. cumprimentos a uma pessoa ausente; lembranças. O dicionário Universal da Língua Portuguesa On-line da Texto Editores, define Saudade (do ant. soedade, soidade, suidade do Lat. solitate, com influência de saudar) como s. f. lembrança triste e suave de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de a...

O zigurate

Pedi-te que me mostrasses o teu zigurate. Correspondeste, e com um "Estou ansiosa", chutaste a bola para o jardim. Do lado de cá, ainda tentei usar o mês de Agosto como desculpa para não o fazer. No entanto crescia a necessidade de escrever, o tempo é pouco, eu sei, mas isso não pode ser razão para deixar de escrever. Apercebi-me que o blog tem mais de dois anos, que começou pequeno, com uma ou duas linhas, a espaços. Foi crescendo e continua pequeno, visitam-no poucos, lêem-no ainda menos. Nem tudo é mau, os anúncios google já renderam USD 4,42, e apenas em quatro meses; não trabalhes, não. Tem mais de dois anos e desde o primeiro post que me perguntam o que é o zigurate, o meu, porque o do Iraque já conhecem. O zigurate é um edifício mental, construído para reforçar a confusão e manter viva a chama. Vês? já está. Sempre lá esteve, era só ler; posso dar esta explicação como terminada e ir para a cama, que me espera uma semana demoníaca; pouco mais terei a acrescentar ao meu ...