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Miguel

O Miguel é um bem disposto. Apesar de ter nascido sem um olho, fez-se um puto forte, seguro de si e resoluto. Rapaz prático, rapidamente tratou de retirar vantagem do infortúnio, camuflado sob uma prótese de cerâmica. Óh Miguel! Tiras o olho e eu dou-te um cigarro. E o Miguel, tirava. Expunha o espaço vazio, dum vermelho vivo e estranho. Assustava as raparigas e chocava professores incapazes de compreender, como ele compreendia, como eu passei a compreender, que ao Miguel não faltava olho nenhum. Nem lhe doía, nem lhe era repugnante; era para ele como ter uma unha preta, e era muito menos marcante que apanhar bexigas e ficar com a tromba cheia de buracos. Um dia, íamos para a escola no trolley de dois andares, cheio, a abarrotar. O Miguel tira o olho e lança-o ao ar pela escada de acesso ao primeiro piso; o olho de vidro sobe e desce, para ficar nas mãos do dono. Repete a façanha umas quantas vezes. Um senhor, todo incomodado com o que via, perguntou-lhe que raio estava ele a fazer, a atirar o olho ao ar. Então senhor? Estou a ver se há lugares lá em cima! Conto isto como um dos momentos mais divertidos da minha vida. O trolley vibrava com as gargalhadas do povo que seguia amalgamado, o inocente que fez a pergunta ficou sem compostura, o Miguel ficou na mesma; sorriso malandro, coloca o olho na órbita e pisca-me o verdadeiro. Caem sempre nesta merda, Pedro.
Um dia qualquer, e como era prestável, disse à vizinha de cima, a quem se tinha fechado a porta de casa, que sairia pela janela do seu quarto e treparia pela caleira até à janela do quarto dela. A palerma aceitou que um rapazito se arriscasse dessa forma e a desgraça rapidamente aconteceu; caiu do segundo andar. Teve a sorte de se enredar num estendal que lhe travou a queda e o fez esborrachar-se um bocadinho menos. Quando o fui ver ao hospital, disse-me que tinha feito uma compressão medular e que estaria bem em menos de um mês.
Vamos-nos falando, as nossas mães são vizinhas sendo fácil cruzarmo-nos. Está gorducho, casado, tem filhos. Continua um bem disposto, indiferente à adversidade com que nasceu. Quando a tendinite requer toda a minha atenção, ponho gelo e lembro-me do Miguel, lançando o olho para o segundo piso do autocarro, como quem diz: vê se há lugar aí em cima.

Comentários

Ana Ribeiro disse…
As tuas histórias devolvem-me, ás vezes, memórias de ter sido criança numa boa época. Sem playstations!

Muito bom. O teu blog está cada vez mais interessante...
Amita disse…
Um belo texto. Adorei a personagem que, apesar da adversidade, é extremamente positiva e feliz.
Um bjo
Teresa David disse…
Embora tenha gostado do poema que postou a seguir a este texto, aqui encontro mais consistência de escrita e uma história mto bem contada.
Obrigada pela sua visita ao meu blog, e dir-lhe-ei em resposta ao seu comentário, que o pior é que acordei cedo demais, pois ele morreu tinha eu 17 anos e tive de ir de imediato trabalhar, logo foi um acordar abrupto.
Bjs
TD

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