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No planeta dos Crispins — o começo

A nossa história começa num tempo em que os crescidos dizem estar tudo ao contrário. Eles dizem que o mundo perdeu os seus valores, que as coisas não são como eram antigamente. Ouvimos os crescidos falarem-nos de um mundo muito diferente: andava-se quase sempre a pé, poucas casas tinham telefone, não havia computadores nem consolas de jogos, os brinquedos eram feitos à mão com panos, latas, paus, e que mais houvesse. Muitas meninas não iam à escola e dos meninos e meninas que iam, a maioria só lá ficava quatro anos. Muito poucos passavam para o ciclo, menos para o secundário e quase nenhuns para a faculdade. Começava-se a trabalhar com doze, dez, às vezes oito anos. Muitos jovens, para ganharem mais dinheiro, iam trabalhar para outros países, submetendo-se a condições de vida ainda mais difíceis que no seu próprio país. Quase todas as pessoas trabalhavam na agricultura ou nas fábricas. Havia também muitos pescadores. Não existiam hipermercados nem centros comerciais. Haviam mercearias pequenas um pouco por todo o lado e as lojas estavam no centro das cidades. Não havia pais separados e todos iam à missa ao domingo. Era ao domingo que se vestia a roupa melhorzita e as calças e camisolas passavam dos irmãos mais velhos para os mais novos. Os mais endinheirados tinham a sua roupa feita por modistas e alfaiates, ali, à medida do freguês. Durante muito tempo apenas se via um canal de televisão, e quando surgir o segundo, as poucas pessoas que tinham televisor em casa, chamavam um técnico apenas para o sintonizar. Apenas ao domingo passavam desenhos animados, mas também, pasmem, nos intervalos dos jogos de futebol. Os televisores não tinham comando e só o pai podia mexer nos botões. Os pais passavam boa parte do tempo fora de casa, a trabalhar ou a fazer outras coisas. As mães ficavam em casa a criar os filhos, muitos filhos. Todos tinham muitos irmãos. Morriam muitos meninos e muitas meninas de doenças que agora nem se ouve falar. Não havia droga nas ruas, e se alguns roubavam, era muitas vezes para comer. Os preços não aumentavam e um automóvel custava menos que hoje um telemóvel, mas até o pão era caro para muitas famílias. Os iogurtes eram horríveis, uma coisa sem cor e sem sabor identificável e o leite tinha de ser bebido no próprio dia para não se estragar. As crianças brincavam na rua sem preocupar as mães, sujavam-se muito e lavavam-se pouco. Ninguém falava em politica e não havia partidos como há hoje. Também não havia democracia e o direito de cada pessoa a expressar a sua opinião estava cortado. Era o cala e come. Vivia-se um tempo de medo, com algumas pessoas a contarem à infame PIDE aquilo que outras faziam e diziam. Eram tempos cruéis e de pobreza, num pais isolado do mundo que achava que éramos uma província pertencente a outro pais e onde se confundia respeito com medo e ordem com repressão.
Hoje a vida é diferente. Melhor dirão uns, pior dirão outros. Para quem não viveu outro mundo senão este, para quem não conheceu o pais onde os crescidos foram meninos e meninas, nada está ao contrário. Está tudo no seu devido lugar, num carrossel de acontecimentos, uns bons, outros maus, que fazem avançar a humanidade. O caminho é longo pois que ainda há muita guerra e muita injustiça por todo o lado. Aqui mesmo, no nosso país, ainda há crianças que não vão à escola e são maltratadas. Não se curam os males de um país numa geração, leva tempo, muito tempo. Perguntem aos crescidos se gostariam de ser crianças agora. A resposta será certamente, sim. Vivemos um tempo onde as crianças podem sonhar como sonharam os crescidos mas, ao contrário deles, o sonho comandará a sua vida. Têm apenas de ser fortes, dedicados e trabalhadores e o universo caberá nas suas mãos.

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