Vivemos uma Belle Époque. O fim do século das luzes trará, é nossa convicção, um novo século de paz e prosperidade jamais vividas. A nossa bela capital, Paris, o centro do mundo civilizado, marca a força das nossas convicções. A torre, o gás, os carros e os aeroplanos dão, à grande cidade, uma acrescida superioridade tecnológica, um vértice de desenvolvimento que a há-de levar, pioneira, para lá do limiar do futuro.
Uma nova mentalidade voga pelas mentes iluminadas dos nossos políticos, industriais e comerciantes. Implantada a república e afastada definitivamente a comuna, a cidade goza os prazeres materiais conseguidos pelo progresso técnico, pela industrialização, pelo comércio ultramarino e pela paz europeia, mas também os consentidos graças à redução da influência da igreja na sociedade, à abertura do povo francês a outros povos e culturas e a um renovado gosto pela vida e pelo belo, que desponta do facto de termos as mais belas e as melhor apresentadas mulheres da Europa.
É nessa graça, as nossas belas mulheres, que nos levam aos mais altos arrojos de moda e audácia social, que assenta a notícia que hoje vos trago. Pois são elas as protagonistas da muito propalada dança que incendeia as mentes dos homens, sejam eles industriais, banqueiros, comerciantes, artistas, jornalistas como este vosso criado, ou mesmo, simples operários: o Can-Can. Oriundo dos salões de bailes das classes trabalhadoras de Montparnasse, já na distante década de 30 [1830], o frenético e atirado Can-Can, institui-se como a imagem de marca da rebrilhante vida nocturna da nossa querida capital. O fulgor das jovens, o fino contorno das suas pernas, o estonteante esvoaçar dos folhos e dos corpos, cativaram, para sempre, o coração errante da sociedade parisiense.
Habituados a regozijar perante um tornozelo descoberto, quase tanto quanto regouga a dona, ou pai desta, da anatomia incautamente exposta, os parisienses entontecem quando, nos palcos dos cabarets, jovens bailarinas esvoaçam, exibindo torneados membros, inteiros; delicados pés, escorreitas pernas, formosos joelhos, robustas coxas e… paro aqui, não vá derramar a tinta. Para proteger as moças da sua natural inocência e para manutenção da justa regra, a que olha apenas à moral e aos bons costumes, todas as bailarinas são obrigadas a vestir culottes; peças que seriam ainda assim de desvelo e desejo, não fosse a previdente pena do legislador, transformando arcas de tesouro, pórticos do desejo, em bastiões do decoro. Para os menos habituados a estas e outras peças do foro intimo feminino, importará descreve-los, ainda que de forma sumária: são peças que se vestem com o intuito de cobrir à exaustão as partes pudibundas da mulher. Neste particular, o Can-Can, têm uma função mais espectacular, sendo produzidos de fino cetim e estando adornados de rendas, folhos ou fitas. Podem ter um apontamento colorido, mas, dita a limpeza, deverão ser de um branco imaculado na sua maior parte. Também, e em obediência estrita à lei, mas não à moda ou à vontade das partes, deverá cobrir, sem interrupção, o corpo que desce do umbigo, a mais bela cicatriz, até ao primeiro terço da coxa. Orifícios, aberturas, colchetes ou qualquer outro artifício de costureira que facilite a sua rápida remoção ou proporcione franco acesso às vergonhas das bailarinas, estão entre as proibições ditadas por lei. O estado, ciente da boa fé dos seus cidadãos, mas também certo, e não complacente, das suas fraquezas, numa função paternal e moralizadora, vela pela cabal observância da lei, instituindo a figura do fiscal de coulottes. Um venerando cavalheiro, de conduta impoluta e sólidos fundamentos morais e éticos que, de forma incansável e abnegada, percorre os mais prestigiados cabarets da bela Paris, inspeccionando as frescas moças enquanto actuam. Mas também nos bastidores a lei o obriga a rigorosas inspecções, assegurando-se que todas trazem coulottes de lei, podendo, não por vontade própria ou lascívia, antes por obrigação legal, averiguar que não têm quaisquer das artimanhas ou orifícios atrás mencionados. É seu dever, caso ache necessário, obrigar as moças a remover os coulottes, cronometrando o tempo tomado por cada uma, validando ou não, consoante a prontidão com que cada uma se desembaraça deles, o valor da peça como resguardo da virtude e da apetência da moça que os enverga para tentar, ou se deixar tentar.
Podem os parisienses descansar, pois, com leis humanas e homens incorruptíveis como os que se nos apresentam, Paris e o seu charme campearão por séculos, longe dos assédios da luxúria e do vilipêndio da moral. Diverti-vos então, parisienses, que estais seguros, apartados do escândalo, cosidos à moral e aos bons costumes.
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