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A mostrar mensagens de outubro, 2006

Adão

O Adão era um filho da puta, ou pelo menos foi nisso que o tornaram. Mas quando tinha 12 anos e eu sete, o Adão era o maior. Quando, com cinco anos cheguei à escola, ele já lá estava, e fizemos juntos juntos toda a primária. No dia do exame de quarta classe, ficou a meu lado, com o beneplácito do professor Nelson, para digamos, assegurar, aos 14 anos, a passagem no exame. Sem saber bem porquê comecei a pedir à minha mãe lanche para dois. Acho que ele nunca me pediu nada, nem eu a ele, mas a dada altura éramos uma espécie de mestre e discípulo, partilhando o que tínhamos para dar; eu comida, ele ratice. É claro que fiquei sempre a ganhar. Pães, leite, maças e bananas foram trocados por saltar lanços inteiros de escadas, fugir à camioneta da natação e regressar à escola a pé pelo monte Aventino, descer como um bombeiro por um pilar de ferro fundido com mais de oito metros de altura (numa escola que era uma verdadeira aberração arquitectónica), e muitas outras façanhas que deixavam o prof

O homem da praia (7)

Corriam as campanhas e o homem sempre regressava para contar as suas histórias, ou talvez fosse melhor dizer, regressava para contar as histórias do atlântico norte. Porque eram dele as histórias. Eram frias, distantes daquela praia amena e daquele mar temperado que a banhava. Os pescadores que as ouviam, perdiam-se na imensidão, atemorizavam-se com o gelo, congratulavam-se com a camaradagem dos que viviam a bordo e protestavam contra a disciplina militar vivida; detestada mas necessária pois, há falta de quem lhes aliviasse o ‘gonadal’ stress, não fosse pela dura disciplina, e em pouco tempo nem o bacalhau escapava. Ainda assim, perante tantas diferenças, cenário, dimensão, risco ou prémio, reconheciam a faina, os gestos, as técnicas, as manhas dos bichos e os caprichos de Éolos. Um dia, uma terrível notícia chegou pelo telefone do tasco. O Adélia Maria naufragou ao largo da Terra Nova após um incêndio abordo. E ele?... Não, não morreu. Morreram homens? Poucos. Poucos, mas morreram. H

O homem da praia (6)

Quem, como eu, tem da pesca, um conceito puramente desportivo ou mesmo fabulado, estranha como pode alguém deixar-se baixar de um lugre de quatro mastros, tendo como único escudo contra o mais despótico dos mares, pouco mais que uma dúzia de tábuas. E ainda por cima, ter de as carregar com quanto bacalhau as linhas trouxerem, fazendo a casquinha afundar no mar e baloiçar perigosamente. Eram aqueles tempos de grande fartura, sem preocupações ambientais de reposição de stocks mas também, sem excessos de sobre-pesca. Os bacalhaus eram monstros e deixavam claro que não queriam ser pescados, sendo necessário por vazes, amacia-los com uma porretada na tola. Só a imponência do peixe meteria medo ao menos experiente. Lembro-me, pequeno, quase sem irmãos, das encomendas em papel de embrulho amarelo, atadas com corda de sisal que o meu pai trazia para casa pela altura do natal. O embrulho, por si só merecia um livro, com a sua peguinha e nós aparados, mas fica para outra altura. De cura amarela

Ponto de vista / Point of view

Este é um rascunho, terá erros. Façam-mos notar, por favor. p az Mal abrigada debaixo de uma sacada, uma mulher molhada, vê parar à sua frente, uma carrinha de caixa aberta. Chovia copiosamente, e ela, desprevenida, a meio do caminho entre qualquer sítio e algum lugar, aguardava, talvez já tarde, que espraiasse. Reparou que na carrinha seguia um homem de bigode, camisa aberta e volta de ouro com a face de Cristo coroado de espinhos pendendo, galhardete do SLB pendurado no retrovisor, ouvindo o CD do Zé Cabra. Atrás, na caixa de carga aberta, encolhia-se num dos cantos, uma mulher de aspecto miserável. Não que fosse miserável; era jovem e bonita. Mas tinha a roupa ensopada, o cabelo ensarilhado e escorrido e estava toda encolhida a um canto, quase amarrotada. Quer por demorar o semáforo a virar, ou simplesmente, por chover e o tempo passar mais devagar, a carrinha demorou a arrancar, permitindo uma troca cúmplice de olhar entre duas compagnon de route, íntimas confidencias silenciosas e

O homem da praia (5)

Há quem diga que o difícil são os dias iguais, os tempos monótonos; que para os grandes momentos há sempre forças que se arrancam do mais fundo e mais escondido do ser, transformando a comum contabilista ou o vulgar motorista, numa Joana ou num Ulisses. Padecia o homem da praia, incapaz de ombrear com a monotonia. Duplamente precavido, depois do naufrágio, evitava as borrascas, passando a cheira-las muito antes de se anunciarem; barco novo e aparelhos do melhor que há, deixavam pouco ao sonho e ao amor pelo mar. Tinha a vida em cruzeiro; casado, filhos a caminho? Quando um dia, no tasco, lhe disseram que já tinha contado aquela história que levava já a meio, retesou cabos, enfunou e traçou novo rumo. Cruzava o imenso atlântico norte em direcção ao Lavrador, seguindo, mais cá, mais lá, o trajecto que Eric - o Vermelho tinha feito 1000 anos antes. Vencido pelo que para outros é conquista, a estabilidade e a certeza no amanhã, tomava de frente o frio, o sol e sentia o tamanho do navio deb